terça-feira, 28 de maio de 2013

Que o Diabo seja meu Deus

Parte de "Scuola di Atene", de Rafael

Traduzi e estou divulgando este ensaio pois me causou arrepios na espinha. Seu nome original é "Devil be my god", seu autor é o mago americano Lon Milo Duquette e é parte ser encontrado de seu excelente livro "Angels, Demons & Gods of the New Millenium", disponível aqui. A história que DuQuette conta não é mesma que está na Wikipedia, mas provavelmente tem também seu quinhão de verdade. Espero que a leitura inspire a vocês assim como me inspirou - dada a necessidade de combater o crescente obscurantismo na mídia, política e opinião pública (das quais a bancada evangélica e a ruralista tem sido símbolo).

No ano 415 D.C. Cyril, o Bispo de Alexandria, se encontrava numa posição muito desconfortável. Não apenas estava atulhado com a tarefa de compor doutrinas viáveis (1) a partir das conflituosas e confusas tradições do jovem culto cristão, mas também esperavam dele que o fizesse em meio à cidade pagã mais sofisticada e iluminada da Terra.
Muito antes do alegado nascimento virgem do salvador crucificado, Alexandria, com suas escolas celebradas e bibliotecas, amamentou as grandes mentes do mundo Mediterrâneo e Asia. Aqui a religião e filosofia foram amantes, e de sua união nasceu um ambiente dinâmico de diálogo e debate. Em mais de uma ocasião Cyril tentou arrebanhar convertidos do corpo de estudantes da Academia Neo-Platônica, apenas para ser chocado pela percepção desconfortável de que os  filósofos calouros sabiam bem mais que ele mesmo a respeito das sutilezas e limitações de sua própria fé. Incômodos como fossem esses momentos, Sua Graça os suportou obedientemente. Eles o proporcionavam a oportunidade de sofrer por sua fé. Sua paciência se esgotou, contudo, quando sua fé e reputação foram desafiadas por uma brilhante e carismática luminária da Escola Alexandrina de Neo-Platonismo, Hypatia - a maior Iniciada mulher do mundo antigo.


Hypatia de Alexandria era sem dúvidas a mais respeitada e influente pensadora de seu tempo. Filha do grande matemático Theon, ela assumiu a honrada posição antes ocupada por seu pai na Academia e lá ensinou por muitos anos. Ela, mais que qualquer outro indivíduo desde Plotino, o pai do Neo-Platonismo, apreendeu o profundo potencial daquela escola de pensamento. Suas aulas eram intensamente populares e atraíram um fluxo de pesquisadores que viam no Neo-Platonismo a possibilidade de uma ordem espiritual realmente universal - uma filosofia suprema - uma religião iluminada para unir todas as religiões. Essa era a promessa dourada do Neo-Platonismo, e Hypatia de Alexandria era sua profetiza virginal.

Preocupada com a degeneração continuada do movimento cristão, sua intolerância com outras fés e suas preocupações perigosas com milagres e maravilhas, Hypatia começou uma série de aulas públicas lidando com o culto. Ela revelou as raízes pagãs da fé e sistematicamente desmascarou os absurdos e superstições que infectaram o movimento. Então, com poder e eloquência ultrapassando o de qualquer apologista cristão, ela elucidou sobre o que considerava os verdadeiros tesouros espirituais encontrados nos supostos ensinamentos do "Cristo".

Seus argumentos eram tão persuasivos que muitos recêm-convertidos ao culto renunciaram suas conversões e se tornaram discípulos de Hypatia. Suas aulas estimularam enorme interesse no Cristianismo, mas não o Cristianismo como apresentado por Cyril, Bispo de Alexandria.

Não abençoado com a força de caráter necessária para sofrer uma confrontação pessoal com Hypatia, Cyril embarcou numa campanha de vilificação pessoal pregando para seu rebanho esfarrapado e fanático que Hypatia era uma ameaça à fé, uma feiticeira em pacto com o Diabo. Essas diatribes pareceram ter pouco efeito por sobre a população sofisticada da Alexandria urbana, que estavam começando a perceber que o Cristianismo do Bispo Cyril era um culto que não brincava direito com as outras crianças. Nas profundezas do deserto Nitriano, contudo, as palavras raivosas de Cyril eventualmente alcançaram o rústico monastério de Pedro, o Leitor.

Anos pregando para o vento e convertendo escorpiões tinham qualificado unicamente Pedro para ser a espada justiceira do Príncipe da Paz, e a idéia de uma mulher possuída pelo diabo atacando seu salvador era mais do que um homem de Deus podia aguentar. Reunindo uma turba de seus companheiros eremitas, ele marchou para Alexandria onde se encontraram com os oficiais da igreja Caesariana que o informaram onde a cada tarde a desavergonhada Hypatia conduzia sua própria carruagem da Academia para sua casa. Armados apenas com clavas, conchas de ostra* e a Graça de Deus, Pedro e sua turba emboscaram Hypatia nas ruas próximas à Academia. Puxando-a de sua carruagem, eles a arrastaram até a igreja Caesariana onde a despiram, espancaram com clavas e finalmente (graças a um debate continuado sobre o status eterno da alma caso o cadáver se mantivesse inteiro) limaram a carne de seus ossos com as conchas de ostra. Os fiapos de carne e o resto de seu corpo foram então levados embora e queimados.


A reação da comunidade alexandrina foi de choque e confusão, e a escola Neo-Platônica recebeu um golpe da qual nunca se recuperou. Embora tenha se esforçado enormemente pra se distanciar do incidente, Cyril aproveitou as vantagens da situação e usou o terror do momento para intimidar mais ainda a cidade e propor que a vontade do Deus Cristão deveria ser resistida apenas por sua própria conta e risco.

O martírio de Hypatia certamento não foi o primeiro exemplo da Verdade resistindo ao mal e perdendo, mas marcou o início de um delirium tremens prolongado do qual a Civilização Ocidental nunca se recuperou completamente. Até mesmo as almas brilhantes que não sucumbiram à loucura universal foram forçadas a florescer contra as projeções distorcidas do pesadelo coletivo.

O crescimento espiritual não é impossível em um ambiente desses. Contudo, onde a sabedoria é percebida pelo mundo como sendo ignorância, amor é considerado pecado, e tudo que há de melhor no espírito humano é condenado e reprimido, a estrada que um buscador da iluminação deve percorrer assume contornos curiosos. Nessa jornada os companheiros são os foragidos e rebeldes; o sagrado brota na blasfêmia, a verdade vaza dos lábios de falsos profetas, o paraíso é buscado no inferno, e Deus é o Diabo em pessoa.

(1) Cyril é renomado por formular o conceito da Trindade Sagrada, uma invenção que eventualmente o levou a canonização.

*NT: "Concha de ostra", segundo a wikipedia, vem da mesma palavra grega que descreve "bloco" ou "paralelepípedo". Ou seja, é mais provável que eles tenham usado os blocos da Igreja Caesariana como arma...

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