Este texto é uma tradução minha (não-oficial) de um artigo do Dr. Alexander Cummins chamado "Dirt Sorcery II - Penny Drops". Foi publicado originalmente no Gods and Radicals e aqui disponibilizado sob a gentil autorização do Dr. Cummins, que mantém também um tumblr contendo um enorme arquivo gratuito de scans de antigos grimórios.
Rituais de “pagar” pela poeira [1] a princípio parecem terrivelmente incongruentes com a política da magia anti-capitalista. Devemos estampar a tudo com uma etiqueta de preço? Cada interação mediada pela promessa chata e repetitiva de dinheiro duro e frio, ou débito tenebroso de plástico? Mas há muitas formas bruxas de pensar sobre moedas e sujeira que precedem o capitalismo industrial, antes da usura atingir tamanhas proporções. As ferramentas do mestre certamente não derrubarão a casa do mestre enquanto seguirmos as instruções. Mas as moedas enquanto matéria podem se prestar à várias reapropriações deste poder opressor.
Basta de papo. Remova o suposto valor monetário da moeda da Águia Dourada, esse sentido estreito que alegam, e considere-a sob um ângulo novo. Peças de metal. Engaje o objeto e seu espírito em seus próprios termos, por sua própria história. De uma certa perspectiva - especificamente, uma que não isola a empreitada humana das ações do mundo natural - uma moeda cunhada e formada pode não ser tão diferente do belo ofício natural da geologia metamórfica. Por outro lado, talvez o Jardim esteja mesmo perdido pra sempre. Talvez essa feitiçaria monetária da sujeira seja um desejo em vão, mas também são os níqueis, especialmente nas mãos dos desesperados.
No pensamento pré-moderno, metais eram um líquido congelado que crescia e pulsava nas veias da terra. Deixar moedas em troca da poeira, em especial enterrá-las, é retornar esses metais a sua casa terrestre. Há muitas formas de circulação. O retorno ao lar é sempre um pouco agridoce, especialmente já alguém não pode verter água no mesmo rio duas vezes. O metal foi estampado, temperado, circulado, enquanto aumenta e diminui o que ele tem de valor capitalista; pode ser traduzido, consolidado, e vendido. Ainda assim, o metal, ele mesmo, flui. Moedas sobrevivem à seus donos, negras marcações nos registros permanentes da humanidade.
Sem indulgir em distinções excessivas entre moedas verdadeiras, fichas e outras moedarias, um bom competidor para ancestral das moedas é a peça vulgar (trite piece - um termo técnico numismático mas também refrescantemente honesto) impressa com uma cabeça de leão, cunhada cerca de 600 A.C. na Lídia. Trazendo a imagem da realeza, é uma liga de electrum entre ouro e prata. A cunhagem de moedas é baseada em ligas. E todas as ligas pertencem a Mercúrio, sendo portanto psicopômpicas: portadoras de mensagens entre os mundos, submersos e desenterrados. O formato de nossas moedas sinaliza também a nós. Um dourado eterno. Uma lua de prata descendendo às profundezas. Mas dediquemos também alguns pensamentos ao básico, aos mínimos denominadores comuns - não apenas aos subjugados, a um pensamento ou a um desejo mas também um cobre venusiano ao amor e à Estrela da Manhã. O sterling de minha terra natal tem uma variedade de moedas heptagonais, através das quais eu faço uma oferenda respeitosa aos Sete Mares e seus governantes. Sete é também um número metonímico da totalidade: o número de Nossa Senhora Escarlate, o útero e a tumba onde todos são paridos. Em se tratando de Rainhas, deveríamos finalmente notar as imagens que as moedas mais comumente portam em seu parto: cabeças de lideranças, majestades, de cultos a heróis, de nacionalidade. Talvez possamos engajar alguma noção conto-de-fadas de regência e território: Já eu prefiro pensar no sepultamento de monarcas humanos, na equanimidade da morte: deixar a terra comer os ricos.
Quando a moeda não representa um valor abstrato, não se trata estritamente de uma compra. Podemos começar a considerar o ritual como uma troca - dádiva por dádiva. Uma questão de etiqueta mais que a mediação de uma negociação, ou exploração. Moedas parecem ser aceitas pelos elementais da terra mais como objetos artísticos, ao invés de propriedade-para-poder ou (os deuses nos protejam) capital. É difícil dizer como os espíritos ctônicos se sentem quanto ao tesouro. Eles são, afinal, gnômicos.
Tenho contudo alguma precaução quanto a direcionar esses presentes à Terra Ela Mesma. Deveríamos notar que esse tipo de dádiva não é realmente troca: não há como retornar um valor igual ao que já nos foi dado. Podemos pensá-los como presentes de uma criança a seus pais, feita dos mesmos materiais que os pais nos disponibilizaram. Mesmo nessa perspectiva, o ritual de presentear diz respeito muito mais a nós que ao planeta. Não temos tratado nossa Mãe Terra bem, por nenhum critério que escolhamos medir. Se você seguir nesse trabalho, esteja preparado para perceber em detalhes excruciantes e intensidade avassaladora quanto mal temos feito a Ela.
Ainda assim, não subestime o poder das oferendas no trato mais cotidiano com os espíritos. Nos convêm agir ao modo de alguém que, como os gnomos, venera um temível governante invisível do Submundo - não se aproprie dos lucros de sua força de trabalho. Não espere qualquer coisa em troco de nada, ou só porque você está dizendo, soltando nomina magica por aí ou não. “Coroa da criação”, é mesmo? O problema das coroas é que elas costumam a subir às cabeças. Em face ao modelo de Grande Mago da História, eu sou muito mais manter meus pés na terra, os pós bem secos e os companheiros alimentados. Nesta encruzilhada de moeda, terra e espírito, os valores são a camaradagem e o respeito pelos trabalhos compartilhados. Então trate bem seus Colegas da Grande Obra.
Oferecer ao Barqueiro um sustento de pós-vida pelos serviços prestados. Garantir aos mortos uma boa vida após a morte, com pelo menos fundos para um bilhete de passagem. O pagamento pela terra de túmulo, em si mesmo, é um tópico tão vasto que precisaremos aguardar sua própria consideração mais tarde nessa série; mas digo agora que não é só um recurso poderoso para ser coletado ou saqueado, mas o começo de uma relação de trabalho. Terra de túmulo é um alto-falante para com o ocupante da tumba: você mais que tudo põe o dinheiro onde sua boca está.
Similarmente, magia de busca ao tesouro e confabulações com espíritos diabólicos e impuros pode apenas ser mencionado de passagem, ao menos até as estrelas se alinharem. O pacto demônico do Grand Grimoire requer moedas. Mais geralmente, oferendamos o cheiro de ouro aos espíritos da riqueza para que possam atrair mais. Desta forma fortalecemos as atrações magnéticas da pedra-imã treinando-as pra caçar e recuperar.
Então chegamos, em procissão Hecateana, aos ossos e cães. Como sabujos, piratas e survivalistas de prioridades estranhas (diferentemente de elementais da terra, humanos não podem comer ouro) podemos ver moedas empurradas na terra como um sepultamento ou internação. Largadas talvez para serem descobertas pela sorte, ou através de mapas ou bastões Mosaicos. Enterrar as moedas pode ser um para-raios através do qual o infortúnio é sepultado. Um clássico ato de transferência - a Moeda Ruim (Bad Penny) - aterrando a estática da má sorte. Deixar um trocado pode também transmutar sua sorte ruim na boa sorte de outro. Fazer mágica pra si mesmo requer que nos situemos num contexto mais amplo. Aliás, no contexto mais amplo de todos: na discordância e concordância de todas as coisas, do berço à tumba. Alguém pode até argumentar que dessa perspectiva essa magia não é sobre você: é sobre a gente.
As inclinações atrativas das moedas ritualmente-despertas podem atrair mais moedas, pra cujo fim podemos treinar pedras-imã e espíritos caça-níqueis, mas também empregá-los para trazer recursos necessários aos outros. É com esse intento, com esses caça-níqueis, que eu planto faróis nos túmulos abandonados - para que venham a receber a atenção devida e fundos que possam consertá-los e respeitosamente mantê-los.
Iconoclasticamente, alguém pode considerar o enterrar de moedas como uma destruição de dinheiro, tirando-o de circulação. A corrente da currency curto-circuitada na inércia. A corrosão de substância ao longo do tempo demonstra outra apreciação da impermanência, o enferrujar da moeda uma oração à decadência. Isso também configura uma meditação na economia da perda e ganho; já que cada decisão torna outra impossível. Um sacrifício valioso é feito em prol de poder. Possivelmente trocado pela manifestação. Considerada geomanticamente, isso é uma transmutação de Populus em Via, chances tumultuadas reduzidas a um caminho singular. Uma lotação lunática de qualquer coisa, diminuída até uma rota prateada pela luz do luar.
Dificilmente posso mencionar a economia sem referir à comparação feita pela historiadora Ann Geneva com os primórdios da astrologia moderna: “Assim como economistas, astrólogos raramente acertaram suas previsões; ainda assim universidades conferiram títulos no assunto, e poucas cabeças de estado deram um passo sem eles”. Esta tensão entre contabilidade e divinação pode ser encontrada - dos jogos de casco de tartaruga aos cuneiformes - no próprio coração do debate acadêmico quanto as origens da escrita humana ela mesma. Pondo de lado as acusações da impenetrabilidade de jargão ou da precisão dos registros de erro e acerto, eu tomo consideravelmente o lado da análise qualitativa da linguagem das estrelas ao invés de qualquer especulação quantitativa do homo rationalis. Mais ainda, uma apreciação das raízes ctônicas da astrologia - entendida como uma abóboda dos mortos elevados - oferece a visão de um submundo de heróis e monstros projetados no céu. Águas plácidas refletindo o acima e o abaixo.
Ou talvez ao contrário, para inverter uma alegoria Platônica - que, afinal, para os gregos pode ser apenas grosso modo verdadeira - emergir de um espaço pequeno e confinado e da idéia de uma existência individualista e independente do Fora - para nos encontrarmos na barriga de algo muito mais largo: a caverna refulgente do universo, em todo seu esplendor bioluminescente. Um céu de mera atmosfera e vazies afrouxando suas amarras para revelar um dossel pendente de luz vivente. Estrelas respirantes a tamborilar, pulsando pelo corpo da Rainha do Céu. Cravejado como um cobre metido na greta. Aquilo no que e com que se deseja.
[1] Nota do tradutor: Esse artigo recorre à palavra Dirt, que no inglês significa tanto sujeira quanto terra. Optei pela palavra poeira como uma solução capaz de cobrir ambos os sentidos, mas que não evoca, na mente de um falante do português, o mesmo sentido imediatamente terroso que no artigo original a palavra Dirt tende a evocar.
[1] Nota do tradutor: Esse artigo recorre à palavra Dirt, que no inglês significa tanto sujeira quanto terra. Optei pela palavra poeira como uma solução capaz de cobrir ambos os sentidos, mas que não evoca, na mente de um falante do português, o mesmo sentido imediatamente terroso que no artigo original a palavra Dirt tende a evocar.
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