mente-gato:
a paisagem é plástica, colorida;
cubos de almofada
de faces coloridas
com letras e números
pequenos fios pendentes dançando ao vento
um chão carpetado,
afiadores de garra
buracos semicírculo no rodapé
o mundo é um playground
e as pequenas coisas se movem
capturando, fascinando,
o gato em um transe sádico.
mente-rato:
mente-presa
rápido fugir;
descer entre os canais
esgueirando-se, apequenando-se
o mundo é um transe paranóico
focinho que estremece eletricamente
do nada surge, bagos crescendo até explodir
rápido se foi. e são seus filhos,
e os filhos dos filhos
continuando o estalar por aí.
é preciso levar ambos em conta
para que possamos produzir
um
MANIFESTO-AUTOMÁTICO:
O mundo se sustenta sobre o automático.
As forças que te possibilitam nesse tempo-espaço
as forças físicas, biológicas, históricas,
o tempo-espaço mesmo e o que quer que o atravesse
se manifestam automaticamente.
O que é de se estranhar é que haja esse singular efeito de invaginação,
esse oco ressonante que é o sujeito.
O que é estranho é que, do automático, aconteça a intencionalidade.
Automaticamente.
O que o gato e o rato tem em comum
a tal ponto que se possa delirar uma máquina gato-rato
é que o gato come o rato, e o corpo-rato
se converte em corpo-gato.
E por um longo e estranho circuito
(que posso chamar de Terra
mas seria mais correto incluir,
conexão por conexão,
o universo inteiro)
tudo reverte em mais ratos,
ao menos tem revertido
automaticamente.
Que corpo é esse capaz de comportar em si tanto a mente-rato
quanto a mente-gato
n'um mesmo delírio interconectado,
um mesmo mundo, um mesmo ser,
que hora experimenta a hora-gato e hora experimenta a hora-rato
alternância de gato e rato / imenso tecido ondulante & estrelado
de repulsa & apalpar jubiloso,
teia-liame, bricolage
de fome, êxtase, terror,
e a esguia nobreza do gato
seu garbo, sua elasticidade
sua estética afiada,
aerodinâmica
é indissociavel da tortura do rato.
É isso, acho eu,
que o mestre-louco Artaud tentava explicar
quando nos falava da
CRUELDADE:
A tortura do rato é necessária pra fazer do gato
uma entidade selvagem e misteriosa
de olhos brilhantes e profundos
gato-enigma.
Não há nada mais patético,
mais desprovido de ares
que um gato totalmente domesticado.
isso não lá bem existe,
embora alguns cheguem perto;
mas - imaginemos!
(o mesmo vale pras obscenas praças e jardins das cidades
onde atacamos a sede biológica de entrelaçamento selvagem
e, com sua fúria natural extenuada, dobramos as árvores
recortando suas folhas em formato esférico
não pisando na grama e não deixando a grama tomar o concreto
e isso pode ser bonito, interessante, curioso,
quando temos um mundo cheio de treliça verde abruptescente & serpenteante lá fora
mas não é esse nosso mundo. Nosso mundo é árvores redondinhas,
quando muito árvores!
É muros e quadrados pra todos os lados, quilômetros sem fim.
e as malditas câmeras de segurança e arame farpado.)
Talvez fosse disso que o Artaud falava como crueldade.
Nosso mundo redondinho não é, de longe, menos cruel.
Apenas recalcamos a crueldade e agora ela retorna a nós redobrada
ampliada em jogos de sombra. Um terrorista com uma bomba na mão;
milhões de imagens, teatro de fantasmas,
paranóia.
máquina-delirante-jornalística.
Os arames-farpado denunciam,
o osso cruel,
pontudo e exposto
que compensa o cetim polpudo dos interiores refinados.
SOMOS O GATO-RATO:
Somos o gato gordo castrado que fecha o mundo e suas riquezas num palácio vigiado
enquanto o que ainda está vivo, biologicamente ativo,
se esconde pelas brechas para respirar
e se apequena pra sobreviver.
no terceiro mundo, nas ruas, nos becos,
nas casas pixadas rodeada por muros opacos
com hortas abruptescentes nos quintais.
A modernidade e seus universais
construiu para nós a possibilidade de imaginar coisas incríveis
como direitos humanos
e feminismo
e ideologias libertárias.
Mas mais universal ainda que os direitos universais é o gato-rato automático,
que conecta-se a tudo e nada e a nada exclui
e é livre mesmo quando, em sua liberdade, produz prisão
segurando o rato pelo seu rabo.
É preciso aprender com isso e não tornar as nossas imaginações
uma ferramenta de ressentimento.
A falência do gato-esfinge é o gato-gordo;
a falência do rato-relâmpago é o rato-ressentido.
Porque, iluminismos à parte,
a humanidade é escrava de impulsos que lhes são estranhos.
Uma pessoa só pode se abster de matar,
mas nações assassinam impunemente. E constroem vírus, venenos e bombas-atômicas
contra seu próprio & mais profundo interesse vital.
Somos servos de impulsos que nos são estranhos,
delírios febris de gato-rato em cada policial
e também em moleques crescidos nos bairros pobres
com a crueldade escancarada em suas caras
e também em moleques crescidos em bairros ricos
com carrões e grana e mulheres
queimando índios em bancos de praça.
É particularmente cruel o fato de que não podemos escapar da crueldade.
Mas podemos escolher como lidar com ela.
Reconhecê-la, aceitá-la, entendê-la.
Optar por vivê-la, e deixar a treliça crescer;
optar por contê-la, e fazer belas árvores esféricas.
Dela fugir no serpentear crepitante de um rato;
nela caçar como um gato letal.
SE EU TIVESSE MIL DARDOS VENENOSOS SILENCIOSOS
TALVEZ ASSASSINASSE OS SENHORES DESSE MUNDO.
De seus corpos eu faria adubo e convidaria as ervas-daninhas a nascer!
Mas outros senhores iriam espontaneamente brotar, e tomar o ser lugar,
porque Walt Disney está morto mas a Disney, essa entidade,
continua
seu rolê fantasmagórico pela história
movendo corpos e pessoas e idéias
para que continue a haver Disney.
Uma instituição, corporação, e o que o valha,
apresenta a vital característica da auto-preservação.
Quais as condições de brotamento de um senhor?
Em que temperatura média, planeta, ecosistema
cyberesfera, dinheirosfera, memesfera,
consegue nascer, crescer, locomover,
comer e reproduzir o Sr. Rockfeller?
Um trabalhador gira sua pequena rodinha privada em uma gaiolinha
- nhec, nhec, nhec, nhec, nhec -
A rodinha se liga a um conjunto de esteiras
e roldanas
e em seu esforço conjugado com tantas outras gaiolinhas dispostas lado-a-lado
colossais braços mecânicos constroem mais gaiolas.
ele chama isso de liberdade.
Eles bradam liberdade,
SCREEEEEECH,
esses ratos.
Mas eu só ouço guinchos. Eu não acredito em nenhuma palavra.
Eu só ouço guinchos por isso vejo torres de gaiolas e rodinhas e gatos gordos
uma ex-raça de predadores entediados
que em sua tristeza não sabem mais o que inventar
a não ser novos meios
de impedir que os ratos fujam pelos tubos.
Eu ouço guinchos mas bem porque não acredito neles,
vejo a estúpida fachada do mundo-propaganda que criamos.
Ridículo cupinzal compulsivo
se abrindo sobre o chão como uma rede mortífera
geoglifos elétricos noturnos fulgurantes,
aviões zumbintes, homens ocupados,
caminhoneiros e industrialistas
brincando de caregar blocos pra lá e pra cá
com seus gigantescos brinquedos de adulto.
E os acadêmicos e políticos e economistas brincam de adultos com seus faz-pipi.
Decidindo entre si como é o mundo, como deve ser o mundo,
em quem bater pra fazer que o mundo seja como é e como deve ser.
Sentados ao redor de mesas, ridículos ratos enfiados em ternos e gravatas,
todos achando que são ou que "representam" o fantasmagórico ESTADO NACIONAL
mas inevitavelmente estando em um lugar só por vez,
em uma perspectiva, um momento, um corpo, decidindo o abstrato
sem jamais sair da mais impura concretude,
com intestino travado, pipiuzim duro e vontade de trepar, cu sem limpar,
suor nas axilas, lactobacilos vivos, lumbago, amigdalite, mau humor, peidorreira,
solitária nos miolos,
guinchando uns com os outros, SCREECH, SCREECH, fazendo o fazer mais alto da civilização,
demonstrando sua profunda iluminação e sapiência, sua política, sua cultura, sua metafísica,
dentro das gaiolinhas que foram construídas pra eles
girarem suas rodinhas mentais, financeiras, diplomáticas, verborrágicas (SCREECH),
para que os braços mecânicos jamais cessem de trabalhar
para que os novos ratos encontrem sua gaiola e sua rodinha
que lhe sirva, que lhe caiba, que lhe estenda a liberdade
de girar sua rodinha por aí.
GATO-RATO NO ESGOTO DO MUNDO
Um rato fora da gaiola é um vagabundo, um parasita, ou mesmo um monstrinho
parafraseando a ilustre ex-candidata à prefeita municipal Maria Elvira.
O critério pra ser declarado um monstrinho são as crianças, diz a sapientíssima;
"criança adora cachorro, criança abraaaaça o cachorro, agora rato?
Rato é monstrinho."
E assim a reverendíssima inaugurará o serviço de envenamento de mendigos
pois criança não abraça mendigo. Nem cachorro sujo vagabundo e sarnento.
Ela terá como aliado meu professor de economia, cuja aspiração era erradicar a pobreza
por questões estéticas.
Os ratos agora querem ser higiênicos!
E higiene, pros gerentes do desespero,
significa varrer tudo que é feio pro esgoto do mundo
largando resíduos industriais na costa da somália
(e colhendo piratas)
ou, como tem feito o atual sr. prefeito de Belo Horizonte Márcio Lacerda
a roubar colchões dos mendigos do centro, as mochilas dos hippies da praça,
as casas ocupadas dos sem-teto, as terras dos quilombolas da Granja Werneck,
e oferecendo em troca hóteis de cinco estrelas
pra hospedar a aristocracia felina trasnacional
e sair bem nas fotos da Fifa.
Ah! Como é bela na TV a democracia. Mas as glórias do 'mundo livre'
mamam nas tetas suadas da escravidão chinesa,
a espetaculosa ALDEIA GLOBAL (flash! flash!) um mero round cataclísmico de mau-mau
na terceira divisão ganha é a melhor mula de carga,
quem vende o próprio solo, o próprio clima,
pros zumbis corporativos & a mística cadavérica do complexo industrial-armamentista.
Os mares estão podres! O esgoto cresce a cheirar mal! As tubulações estão repletas de monstrinhos.
Muitas vezes vivendo na merda.
Mas há aí um outro lado -- A gente subestima a merda!
Pois é da bosta que colhemos os sagrados cogumelos mágicos
que algumas culturas souberam reconhecer e honrar.
É a merda, e não o lixo hospitalar radioativo urbano,
que melhor serve de adubo
a uma Cultura Nascente da Terra.
EPILOGO
Em cada célula se alojou um rato-lume,
um vaga-trocinho de Diferença.
Na ciência
dessa microfauna, jaz a única esperança
para combater as nanomáquinas do poder!