[trigger warning: violência sexual]
Ontem a Lua em Escorpião se opôs à Marte com Algol em Touro.
Esse é um dos trânsitos mais terríveis que existem. Por isso não quis escrever sobre ele antes, ou durante. Mas agora, a questão é outra: posso ajudar quem viveu seu impacto a processá-lo. Nem sempre astrologia é sobre prever o futuro: em uma consulta natal, o passado é igualmente importante - ou até mais.
Bom, primeiro, vamos por uma questão de lado: ontem meu dia foi absolutamente comum. Eu já sabia, desde antes, que ia ser assim. Nas técnicas de previsão, são outros os planetas ativados em minha vida agora como "Cronocratas" - senhores do tempo.
Mas quem tinha Marte ativado ontem deve ter vivido uma brusca ruptura. A Lua, no signo de sua queda - Escorpião - se encontrou com Marte em Touro em uma oposição. Marte no signo que exalta a Lua, Lua no signo que é casa de Marte. Chamamos isso de "mútua recepção", quando um par de planetas recebe um ao outro em seus territórios.
Mas, nesse caso, trata-se mais de uma "mútua decepção", pois a casa da Lua é o exílio de Marte, e a casa de Marte é a humilhação (queda) da Lua. Dois planetas vulneráveis se opõem. Se por um lado a vulnerabilidade é um ingrediente essencial para o amor, por outro, trata-se de uma oposição com Marte, o planeta vermelho que governa a guerra. Me lembro, aqui, da fábula russa onde um sapo ajuda um escorpião a cruzar um rio, nadando com ele em suas costas; mas no meio do caminho o escorpião lhe dá uma ferroada, condenando ambos a morte. O escorpião alega, "é a minha natureza" - e de fato, como podemos culpá-lo? O sapo certamente é uma vítima, mas que adianta dizer isso quando morre afogado junto ao perpetrador? Uma consciência tranquila não é o suficiente! A natureza ignora boas intenções - e não tem perdão para a fraqueza.
O trânsito de ontem teve um agravante: Marte está (ainda agora) conjunto à Algol, uma estrela que tem a fama de ser a mais maléfica dos céus. Algol é a cabeça da Medusa, da constelação de Perseu. Quando uma estrela é ativada, ela trás consigo a bagagem de seu mito, que precisamos então recontar.
Os poetas contam que Medusa era uma das 3 Górgonas, monstros alados com cabelo de serpente - mas que, ao contrário de suas irmãs, tinha sido uma humana, e por isso era mortal. Poseidon, o Deus dos mares, violou seu corpo em um templo de Atena, que em punição pelo sacrilégio transformou-a em monstro.
O herói Perseu é desafiado por um Rei para confrontar a Medusa, a quem vem a decapitar, num golpe fatal. Do sangue derramado nasce Pégaso - o cavalo voador das lendas. A cabeça da Medusa é então empregada como arma na luta contra o monstro Cetus, em busca de resgatar Andrômeda, a princesa negra amarrada em sacrifício a um rochedo.
Vitima de uma violação, Medusa foi ela mesma a punida. Essa ideia é tão horrorosa que muitos buscam "corrigir" o mito, transformando-a em heroína. Mais rico é, ao meu ver, aceitar que o mito - e o universo - é amoral, e melhor assim: pois então permitimos que acolha e expresse uma ambiguidade penetrante, mais verdadeira que nosso senso demasiado humano de ordem e justiça.
Algumas pessoas, vítimas da injustiça e da crueldade, acabam por se tornar, elas mesmas, injustas e cruéis. É isso que vejo na Medusa: uma mulher corrompida pelo ressentimento, pelo desejo de vingança. Isso não é culpar a vítima - culpa, novamente, é um conceito demasiado humano - talvez "responsabilidade" seja melhor, não como a culpa que se propõe um atributo, mas como um processo, um tornar-se quase divino. Quão mais fácil seria se aceitássemos que o humano não é o lugar da consciência e da razão, mas oceano, um lugar fatal onde se cruzam Deuses e daimones; que a crueldade não é o sono da razão, mas pelo contrário, é a razão que é uma ilha, uma exceção rara no turbilhão de sangue e água salgada? Uma intervenção divina... O que torna a Medusa em monstro é perceber que, em potencial, somos todos monstros; e também heróis; e que um e outro estão inescapavelmente amarrados; e que a maioria de nós não é nem monstro nem herói ainda - só porque não tivemos a sorte ou azar de conhecer a própria profundeza.
Então não se trata de higienizar a Medusa, dizer a ela "não se vingue, não tenha ódio". É precisamente sua sua monstruosidade que, dirigida pelo impulso heroico, permite o resgate da princesa Andrômeda. A busca da vingança repousa na ilusão de que existe um culpado - uma ilusão que talvez seja preciso viver e atravessar - sem a pressa, inútil, do perdão, que não se deve forçar, pois tem seu próprio tempo.
A Medusa é passagem, e o único risco é se deixar petrificar.
Iago Pereira
(imagem: Robert Stevens Connett, "Microverse IV")
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