quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Para libertar as Forças Maravilhosas da Noite



O erro é pensar que há um segredo, quando na verdade são dois segredos. São necessários dois para constituir um encontro, e o encontro é a única realidade, o resto todo é fantasma.


*

O paradoxo do surrealismo: Por um lado, empenhado em destruir a arte burguesa, em destruir acima de tudo o artista, o autor, na disjunção da consciência que abra as alas do automático, abre o fluxo pro murmúrio da inspiração, pro manancial infinito de Maravilha escondido no avesso da realidade diurna, conjurando a arte minoritária por excelência, tornando a arte acessível para toda a humanidade. Todos somos capazes de sonhar; imaginar um Mito é um direito irremovível de toda comunitariedade. E toda comunitariedade é, por definição, contracultural. "Os escritores surrealistas (...) especificavam que, para eles, não tem lugar em um regime capitalista a defesa e a manutenção da cultura. Esta cultura, diziam eles, não nos interessa senão no seu devir, e ese mesmo devir necessita antes de mais nada da transformação da sociedade pela Revolução proletária"(1). A "cultura" burguesa é civilizatória, estatal, pois busca antes de tudo congelar um certo estado das coisas, preservar um "patrimônio", enquanto simultaneamente esvazia a sociedade de toda vitalidade. A "cultura" burguesa está sempre contra o corpo, está sempre em busca de erigir um ideal transcendente (portanto incorpóreo) de belo, de educado, de - enfim - civilizado, em contraposição às forças caósmicas da barbárie, em contraposição ao poder transformador do encontro. Por isso toda comunitariedade é contracultural - pois a comunitariedade é a mãe da invenção. O paradoxo está em, por outro lado, Breton clamar pela "OCULTAÇÃO PROFUNDA E VERDADEIRA DO SURREALISMO"(2), assim em caixa alta, bradando "Abaixo os que queriam distribuir o pão maldito aos passarinhos."(2) "A aprovação do público deve ser evitada acima de tudo. É absolutamente necessário impedir o público de entrar, se quisermos evitar a confusão. Acredito que é preciso mantê-lo exasperado à porta, através de um sistema de desafios e provocações."(2) Para manter seu caráter radical, o surrealismo precisa acima de tudo evitar a banalidade das categorias, e ao fazê-lo, demonstra sua ascendência Nitzscheana, sua anarquia coroada. Para ser verdadeiramente de todos, é inevitável passar pelas minorias, pois ninguém é a maioria. Não há um homem sequer na terra que seja um homem vitruviano, não há nenhum caso que seja verdadeiramente universal, cada caso é um encontro singular e irrepetível. O não-espaço do encontro: esse “entre as coisas [que] não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio”(3)


*

Por eu não ter tido uma socialização comum na minha adolescente (nerd solitário que eu era), mantive-me até bem tarde particulamente cego pras sutilezas e nuances da dança de aproximação e afastamento das pessoas. No processo que se seguiu, de aprendizado rápido e forçoso da arte de viver, assisti com curiosidade a capacidade das pessoas de capturar pequenos sinais e amarrá-los em uma trama de significado - "era isso e não aquilo que ele queria", "ela estava te dando idéia", etc. Até que um dia caiu a ficha de que todos eram tão incapazes quanto eu de capturar sinais sutis; a diferença é que não percebiam isso. Uma mesma situação, vivenciada por várias pessoas, desencadeava toda uma gama divergente de interpretações. E de alguma forma, apesar de ninguém se entender e todos acharem que se entendiam, a vida continuava, e as pessoas se afetavam umas às outras, e se uniam e se separavam. No que concluí que na verdade, a vida social é uma sequência muito grande de mal entendidos, e está aí a sua própria vivacidade, seu próprio poder de sempre se modificar. No coração de todo encontro há uma disjunção, um desencontro, que o torna singular, e que o amarra aos outros encontros que inevitávelmente acontecem.





Quando tirei uma carta de tarot para esse ano, consegui "Os Amantes". Esta carta corresponde a um dos dois grandes mistérios dos quais nos falam os esoteristas; só pode ser entendida quando pensada lado a lado com uma carta que lhe serve de contraparte - "Arte". Juntas, "compõem a máxima alquímica abrangente: Solve et coagula"(4), análise e síntese. "Ora, o que aparecem à medida que essas experimentações se desenrolam, é que um único nome nunca basta. São necessários dois. Por quê? Porque o Ser deve se dizer em um único sentido, por um lado em relação à unidade de sua potência, por outro lado em relação à multiplicidade dos simulacros divergentes que essa potência atualiza em si mesma. (...) Para dizer que há apenas um único sentido [univocidade], são necessários dois nomes." (5) Seria impossível entender o encontro em sua univocidade se ele não fosse também, inextricavelmente, desencontro. E está aí o mistério dos Amantes, a possibilidade de que dos muitos se façam um, se encontrem, sem que deixem com isso de ser muitos, sem com isso deixar de ser desencontro. Ao começo de janeiro, logo após eu ter me mudado de casa, achei que esta carta fosse se referir à minha relação com a casa, à minha entrega ao cotidiano - com a própria proposta de viver autogestionariamente: produzir um consenso partindo das diferenças entre as pessoas. Agora eu percebo que é isso, mas é muito mais - o mistério dos Amantes se coloca para mim em quase todas as esferas de minha vida. É só agora que percebo que o surrealismo mesmo esteve, desde sua questão inicial - a do automatismo - envolvido na exploração deste mistério. "A carta chamada Os Amantes, cujo título secreto é Os Filhos da Voz, o Oráculo dos Poderosos Deuses, conduz do número 3 ao número 6. O número 6 é a personalidade humana de um homem; o número 3, sua intuição espiritual. Portanto, é natural e significativo que a influência do 3 sobre o 6 seja aquela da voz da intuição ou da inspiração." (4) O aconchegante murmúrio silencioso que é o pano de fundo da consciência.





Com todas as coisas Maravilhosas, a Chave me foi entregue sem alarde - quase de passagem, quase jogada ao chão por sua obviedade. Há dois tipos de noites mágicas possíveis - há as noites de exaltação, de extroversão, de explosão coletiva, enfim, as noites atravessadas pela festa propriamente dita, não a festa que é marcada, mas a festa que é vivida no corpo (o que não impede, claro, que ela seja marcada, mas é uma diferença da ordem da do menu e da refeição). E há também as noites íntimas e silenciosas, as noites das conversas francas entre amigos em frente a uma fogueira, as noites do aconchego e de calma troca de afetos. E não se pode ter uma sem que se tenha as outras, como é da natureza do corpo que empregue o inspirar para expirar, e o expirar para o inspirar, como é da natureza do corpo que se durma pra que se possa acordar, e que se acorde para que se possa dormir. E se as noites de extroversão me trouxeram a questão, "qual é a chave capaz de destrancar as Forças Maravilhosas da noite?", foi a Raposa quem me deu, numa noite de introversão - a resposta: Entrega.

*

"É ISSO", me disse o Lobo, aqui e ali, quando era questão de sê-lo. "É ISSO", me disse ontem a Raposa. Quando ISSO acontece, não é possível agarrá-lo, não é possível prendê-lo, não é possível definí-lo ou conservá-lo; é possível apenas viver. E é precisamente ISSO que constitui o Maravilhoso em sua face extrovertida. Mas é possível também olhar do outro lado, a partir do aspecto lento e silencioso da Maravilha, e ali acontece o isolamento necessário pra que se possa apreender a Maravilha sem se confundir com ela. "É quando ela dorme que ela me pertence; eu entro em seus sonhos como um ladrão e perco-a verdadeiramente como quem perde uma coroa. Sou desapossado das raízes do ouro, decerto, mas tenho na mão os fios da tempestade e conservo os sinetes de cera do crime." (6) "É preciso pensar 'juntas' a univocidade do Ser e a equivocidade dos entes (a segunda sendo apenas a produção imanente da primeira), sem a mediação dos gêneros e das espécies, dos tipos ou emblemas, em suma: sem categorias, sem generalidades. (...) fazer de modo que a aparente travessia de uma analítica que joga ora com a face unívoca do ser (atividade), ora com a do múltiplo equívoco dos entes (passividade), nunca seja categorial. Nunca distribuir ou dividir o ser segundo essas duas vias. Nunca perder de vista que, se, como demonstramos, sempre são necessários dois nomes para fazer justiça à univocidade, esses dois nomes não operam nenhuma divisão ontológica."(5). Afinal, "Viver e deixar de viver são soluções imaginárias. A existência está em outro lugar." (7)

*

A dinâmica do desejo humano é, fundamentalmente, uma economia da abundância. Quanto mais energia eu entrego, quanto mais eu coloco para circular, mas energia eu recebo. "O que eu dou, eu dou a mim mesmo. O que eu não dou, eu tiro de mim mesmo." (8) Tão distinta do desejo faltoso do capitalismo, onde quanto mais eu dou, menos eu tenho! Tive crises de avareza morando aqui na casa; dificuldade de me desprender de minha privacidade, de minhas posses, sensação de estar sendo constantemente ameaçado e roubado pelo coletivo. Pardal identificou, em mim, uma problemática subjacente a todas as outras, a minha avareza de vida - disfarçada como "individualismo" - o esforço constante de reter a minha vida em mim, mantê-la, cristalizá-la, acumulá-la. Mas a vida, em sua natureza própria de mudança perpétua, não aceita ser acumulada, e se perde na mesma medida em que se congela, e se amplifica na mesma medida em que circula. No amor - é a mesma coisa; quanto mais busco reter o amor dos outros por mim, conservá-lo, mais eu minto a mim e aos outros, abafando sua trêmula chama. O ciúmes é fundamentalmente anti-amor, filho da insegurança e da posse, sob o signo da Falta e da escassez do outro. É preciso deixar o amor ir e vir, dormir e fluir, conforme seus próprios planos internos, e como consequência, ele será sempre um tanto a mais do que o necessário, deliciosamente desnecessário. É por isso que o amor passa sempre ao largo do namoro, o amor é a própria instância primeira da relação, é a própria força de entrega, e o namoro? Não há ninguém que verdadeiramente namore, por definição, uma vez que o namoro é uma abstração com a vã pretensão de cristalizar o amor, definir seus limites, cercear suas forças. É impossível namorar, mas é possível usar o namoro, esta palavra, como uma ferramenta de dominação e submissão, é possível atar-se a ela como um fardo e arrastar seu peso por aí. Os amantes não são namorados, são acima de tudo amorados, e o amor apenas - amora.


Lex Luthor, numa epifania induzida por ter inoculado um elixir (de sua fabricação) que lhe concedia temporariamente os poderes do Superman. Grant Morrison - All Star Superman (2006)


PAN
2010

(1) André Breton - Do tempo em que os surrealistas tinham razão (1932)
(2) André Breton - Segundo Manifesto do Surrealismo (1930)
(3) Deleuze e Guattari - Mil Platôs vol. 4 (1997)
(4) Aleister Crowley - O Livro de Thoth (1944)
(5) Alain Badiou - Deleuze, o clamor do ser (xxxx)
(6) André Breton - Peixe Solúvel (1924)
(7) André Breton - [Primeiro] Manifesto do Surrealismo (1924)
(8) Alejandro Jodorowsky - A Conversation with Alejandro Jodorowsky (extra do filme El Topo)


Nenhum comentário:

Postar um comentário