sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

À RESPEITO DE RELIGIÃO (parte 1)


Naga Sadhu no templo Pashupatinath, Nepal (link)

Há uns tempos circulou entre meus amigos um texto cuja opinião geral poderia ser sumarizada em 'religião não merece meu respeito'. Concordo que muitas coisas imbecis são feitas em nome da religião, como por exemplo a opressão de mulheres, gays, etc, e repudio essas coisas tanto quanto o autor do texto. Também não acho que faz sentido depositar a autoridade sobre a verdade por sobre sacerdotes ou textos quaisquer. Porém, não é sábio 'jogar o bebê fora com a água do banho'. Infelizmente não pude responder uma replica quando li o texto pela primeira vez, tampouco encontrei-o novamente no limbo que é o facebook; porém ainda vale a pena apresentar algumas idéias que tenho sobre RELIGIÃO, com objetivo de mudar os termos da discussão, e abrir linhas de experimentação; meu objetivo é fazer uma "crítica marginal da religião" enquanto simultaneamente faço uma "crítica marginal-religiosa do materialismo".

O QUE DIABOS É RELIGIÃO?

Uma das hipóteses sobre a etimologia da palavra RELIGIÃO supõe que deriva de RE - LIGARE, significando "atar, amarrar, unir o que esteve separado". Nesse caso, RELIGIÃO e YOGA são duas coisas próximas, pois YOGA signifia UNIÃO. Religar este mundo a um "mundo invisível"; religar a alma humana a algo que a transcende e inclui; religar o mundano ao Sagrado - dá pra pegar a idéia.

Quando as pessoas tipicamente debatem "religião", usualmente estão falando de "religiões organizadas e hierárquicas", que são organizações destinadas a MEDIAR o contato entre os fiéis e o sagrado. Por via de regra, o contato direto com o sagrado só aconteceu há milhares de anos e seu único registro são livros antigos. Hoje em dia, alguns sacerdotes poderiam entrar em contato com deus pro exercício de certas funções (ex. conferir perdão); de resto, qualquer um que clamasse conhecimento direto da divindade (ao modo dos antigos textos) seria considerado louco. A Verdade está dada num livro e é imutável; não pode ser experimentada ou corroborada de forma alguma. Pede-se, portanto, dos fiéis que tenham "FÉ" - traduzindo: que sustentem a opinião de que A Verdade está dada através da Organização e seu Livro, e apenas ali, independente de qualquer objeção prática, racional ou advinda da experiência. (1)


Mas nem sempre foi assim. O modelo mais antigo de "prática religiosa" (aceitemos isso por enquanto num sentido vago e indefinido) seriam feiticeiros, xamãs, pajés e similares. Essas práticas diferem segundo tempo, lugar e cultura, mas possuem consonâncias tão fortes que ocasionou-se na antropologia de por vezes tratá-las indistintamente como "xamanismo".

O xamã, assim como o líder tribal (2), é uma espécie de "cargo de prestígio". Por seu esforço e dedicação ele pode fornecer um serviço específico e geralmente útil à sociedade, e ocupar um lugar de destaque. Mas ao contrário do líder (e do sacerdote), o xamã habita as margens do poder, e não o centro; habita a margem da sociedade (e seus códigos) com o "mundo invisível", ou mesmo literalmente vive na margem da aldeia com a floresta. Em um certo sentido, ele também é um mediador.

Xamã Yupik, Nushagak, Alaska, 1890s (link)

Um historiador famoso da religião, Mircea Eliade, classificou essas práticas como "técnicas arcaicas de êxtase". Os xamãs seriam responsáveis pela disseminação, aplicação e aprimoramento de certas técnicas indutoras de estados alterados de consciência. Esses estados eram usados pros mais diversos fins, desde metafísicos como esclarecer o funcionamento do "mundo invisível", até resolver problemas práticos através de magia, como encontrar objetos perdidos, caça e, especialmente, curar doenças.

O xamanismo é diferente do sacerdócio de uma religião organizada de diversas formas. Primeiro, é tipicamente um sistema aberto, não-dogmático: você aprende as técnicas e sua aplicação, e os macetes dos xamãs antigos, mas tudo está submetido à verificação pela experiência, à improvisação. O sistema nunca se fecha na "verdade única e última do universo"; o xamã é acima de tudo um experimentador. Segundo, o xamanismo não é hierárquico; cada xamã é senhor de si mesmo, e qualquer um (3) pode se tornar xamã, contanto que consiga investir o tempo e recursos necessários pra alguma iniciação sob tutela de outro xamã. Sei de um exemplo (os índios Jivaro da bacia amazônica) onde 50% da população é xamã! Portanto, embora o xamã seja mediador do sagrado perante os não-xamãs, essa função de mediação é apenas secundária, e é possível a qualquer um conquistar o contato direto com o 'mundo invisível'. (4)

Além do "complexo xamânico", há também uma série de "fenômenos religiosos" que desviam das religiões organizadas e hierárquicas, que vou resumir como ASCETISMO: profetas (como no judaísmo), místicos nômades (como os dervixes no sufismo) e yogis (na India e arredores) e monges. Algumas culturas, como a indiana, possuem um "espaço" reservado em sua cultura para as pessoas que decidem "drop-out", largam tudo ao estilo dos hippies, e saem em busca da experiência direta do sagrado - geralmente vivendo em cavernas, templos, florestas, cemitérios ou desertos. (a wikipedia diz que há ao redor de 5 milhões destes "saddhus" na India no presente momento). Há bem provavelmente entrelaçamentos os mais diversos entre práticas xamânicas e ascéticas, e aliás o xamã também tem práticas ascéticas. As práticas ascéticas definidoras são a RENÚNCIA e as CONTEMPLAÇÕES, mas também envolvem outras coisas como teurgias, feitiçaria, conferir bençãos, consumo de enteógenos etc. Renuncias implicam a ruptura com os objetivos "mundanos" para concentrar-se na união com o divino; por vezes são de caráter eminentemente prático. Contemplações são técnicas de consciência - outro termo seria meditações - que, praticadas disciplinadamente, provocam mudanças profundas e duradouras na perspectiva dos praticantes.

Um "Baul", bardos místicos itinerantes do Bengali (link)

PRECISO ENFATIZAR ESTE PONTO. Existem técnicas específicas (estudadas por ascetas e místicos em todo o globo) que, aplicadas disciplinadamente, podem produzir mudanças profundas na perspectiva. Esta mudança profunda é algo que EU vivi e é corroborado por experiência pessoal de incontáveis pessoas ao redor do globo (5). Os efeitos destas técnicas INDEPENDEM de "crença"; você não precisa acreditar para funcionar; precisa simplesmente por em prática. A técnica independe de "crença" pois consiste numa série de disposições experimentais do corpo, e por 'corpo' incluo também a mente, que (seguindo Nietzsche) é parte do corpo, "seu joguete". O mesmo pode ser dito das práticas xamânicas, quiçá da maioria das práticas mágicas. O budismo é um caso sui generis, como uma "religião organizada" extremamente focada no ascetismo, e mais interessante ainda, atéia. (porém, como neste mundo tudo é uma mistureba locca, foi vítima da infiltração de todo tipo de superstição e magia popular ingênua; por outro lado, o budismo tibetano é extremamente mágico, sem deixar de ser extremamente ascético).

Por fim, temos como "fenômeno religioso" de modo geral todas as demais tradições de magia e feitiçaria, com diversos graus de ingenuidade e em diversos tipos de contexto - feitiçaria popular onipresente, teurgia, alta magia hermética, alquimia, religiões-mágicas como a Umbanda, o Candomblé, Santeria, Vodoun, etc. A Magia é um tema complicado de se destrinchar, e as fronteiras com a religião não são bem claras. Algumas formas de Magia possuem em si a idéia e práticas de contato direto com o Sagrado; e nesse caso, são "religiões" no sentido de RELIGARE e YOGA. Muitas formas de magia são também "simplesmente práticas", semelhantes às xamânicas ou ascéticas, e não dependem de nenhuma crença ou opinião para serem postas pra funcionar.

Resumindo, "religião" compreende em si uma gama de fenômenos bastante diferentes, com implicações políticas, éticas e estéticas peculiares; há organizações hierárquicas, há "papéis de prestígio", há praticas marginais; há elementos que demandam "crença" (ie, sustentar uma opinião sem embasamento logicamente suficiente), outros não demandam "crença" alguma (como muitas das práticas mágicas e ascéticas). Há algumas que são dogmáticas, e há outras que são abertas ao empirismo, como o xamanismo. Num certo sentido, a magia e o ascetismo compreendem em si um monte de "ciências marginais" - organizações de práticas e teorias (ie. asserções não-dogmáticas) articuladas em uma longa conversa ao longo da história, baseado em experiência empírica dos praticantes.

Alguns podem objetar, então: "essas coisas não existem! qual diabos é a experiência empírica dos praticantes, que eles ficam tanto discutindo?" - mas isso vai ficar pra PARTE 2 porque o texto já tá muito grande.

Xamã. Fonte: desconhecida.

(1) Há um outro sentido pra palavra fé, apresentada por Dumezil no Mitra-Varuna (cito de memória): Fé como "a confiança que um ártifice tem em suas ferramentas". "Fé", nesse sentido, é a confiança de que estamos dando o melhor, trabalhando em nossos limites, entregues o suficiente para sermos capazes de encarar o "fracasso" com abertura.

(2) Para entender a liderança "anarquistica" que sociedades sem-Estado desenvolvem, vale estudar o fenômeno do "Big Man" polinésio (ou o clássico de Marshall Sallins, Stone Age Economics). Um homem pode se tornar um líder, mas para tal ele precisa doar a maioria de sua propriedade (que advêm da força de trabalho combinada de toda a família) e trabalhar em dobro; ele é recompensado com respeito, admiração e influência sobre uma rede social extensa.

(3) A bem da verdade, há muitos casos onde só homens podem se tornar xamãs. Sei de alguns casos onde o impedimento de uma mulher se tornar xamã é apenas prático-econômico (uma mulher dificilmente consegue cumprir seu papel tradicional ao mesmo tempo que passa pelo árduo processo iniciático). Há também algumas linhagens de xamanismo estritamente femininos, também, mas são mais raras.

(4) Quando tratamos de termos genéricos como "xamã", hão de haver muitas exceções; o ideal seria eu qualificar cada asserção com um 'tipicamente', e não o fiz apenas por elegância textual.

(5) Isso pode ser verificado; existem movimentos "espontâneos" e internacionais em redes da internet que se baseiam em trocar experiências sobre técnicas de meditação, criando vocabulário comum, não-dogmático e não-sectário, sobre as técnicas. Vale checar (em inglês): Dharma Overground, Kenneth Folk Dharma, Awakenetwork

4 comentários:

  1. Meu Querido,
    Religião surgiu em uma época de profunda ignorância e falta de conhecimento sobre o universo , sua origem e funcionamento, sobre o que é ser Humano e sobre o desconhecido.
    Neste cenário surgiram varias religiões cada qual com sua peculiaridade, e quase todas tentando explicar a origem do universo, como ele funciona, e o sentido da vida, explicando quase sempre de forma precária e rudimentar. Ao mesmo tempo, no pacote, várias regras morais e regras de como viver em sociedade.
    Penso que a única parte aproveitável das religiões é a parte da procura do sagrado por meio da experiência própria, com o uso ou não de enteógenos.
    Sobre a origem do universo, da vida, e como o universo “funciona” podemos deixar para a ciência explicar, isso não quer dizer se tornar totalmente materialista , é lógico que não podemos descartar o mundo invisível e que está além dos nossos sentidos, com certeza existe um plano existencial além desse.
    Sobe magia, você realmente acredita nisso? É divertido, interessante, seria muito legal se existisse, mas, por favor né, magia (negra ou não) é difícil de engolir

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  2. É de enorme elitismo querer que a ciência, e só ela, possa explicar 'a origem do universo, da vida'...

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  3. Internauta,
    realmente não toquei, no texto, no aspecto da religião enquanto dispensadora de regras morais; a razão é que isso é estúpido e é parte da "carga extra" que as organizações hierarquizadas trouxeram pra bagaça, que fico feliz em deixar escoar com a água do banho. As prescrições morais ou são técnicas úteis (como renúncias) para o contato direto com o sagrado, ou são simplesmente intrusas no fluir biológico dos corpos. Faço a distinção das regras morais com a ÉTICA, contudo, que em meu entendimento é também POLÍTICA - ética é um tema de conversa e reflexão rico e necessário.
    Quanto às "explicações" que dão pras coisas: se a "ciência" conseguisse produzir SENTIDO, então ela poderia muito bem substituir a "religião"; porém, as ciências oficiais oferecem apenas aproximações objetivas, que são ótimas pra construir foguetes, mas péssimas pra fazer poesia. Nós seres humanos vivemos não só de comida e água, mas também de SENTIDO. Por isso os mitos são importantes; são péssimos como explicações objetivas, mas fazem ótima poesia.
    Considero que o melhor é deixar a ciência oficial explicar as coisas objetivas, e de resto, que a experiência direta do sagrado alimente o espírito, e explique as perguntas metafísicas.
    Quanto à magia: "acredito", mas só agora; tive experiências estrondosas que demoliram o meu ceticismo (mas apenas porque insisti muito até chegar lá). Não recomendo ninguém que acredite em mim sem base na experiência própria; recomendo apenas que experimentem, como eu fiz. Experimente mesmo sem acreditar, "opinião" não importa. Só aviso que talvez não funcione de primeira; é algo que tem de ser desenvolvido. Tô escrevendo uns textos que planejo divulgar com instrução minimalista de boa qualidade. Se preferir não experimentar nada, fique à vontade; isso não é uma empresa missionária e eu não ganho nada convertendo gente. (:

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  4. Porém, na maioria do que se diz sobre magia por aí há uma quantidade enorme de crendice, superstição e viagens na batatinha que não suportam o menor toque de escrutínio lógico. Acho que é necessário ser crítico e não engolir qualquer invenção de moda. E alguém "efetivamente fazer magia" não quer dizer que vc tenha que acatar as interpretações desta pessoa, nem tampouco que essa pessoa é imune a crendices, superstições e viagens na batatinha (nem de longe).

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