Vajrayogini |
Na parte 1 desse texto, expliquei a diferença entre diversos tipos de prática religiosa, enfatizando as práticas marginais dos ascetas, xamãs e magos. Nesta parte, eu me proponho a elaborar melhor qual é o fazer marginal da religião - amarrando tudo na categoria de "êxtase", e como a partir do êxtase podemos lançar uma visão crítica por sobre o materialismo.
As ciências do êxtase:
A mente máquina maquina, à trabalho da inteligência do corpo. Aproxima-se do que causa prazer, afasta-se do que causa dor. Automatização para poupar energia. Tudo a inteligência do corpo. Por sobre essa base, inventamos o simbólico, e com isso o fazer humano virar 'cultura'. A mente se ocupa: conseguir parceiros sexuais - conseguir comida, água, abrigo - manter-se observante dos riscos. E eis que surge o fogo. Ao seu redor, certa segurança, a escuridão circundante impõe imobilidade. Sob a insinuação da Chama, o simbólico prolifera. A mente deriva - surgem histórias. E também na imobilidade que a caça demanda, também na arte borrocada nas paredes, no relaxamento do gozo e consumo de psiquedélicos... A mente voa. Em meio à esses voos, a humanidade inventou/descobriu o ÊXTASE.
Êxtase não é ficar extremamente alegre.
Extase = ek stasis, fora de inércia.
O Êxtase suspende o funcionamento normal da mente - o funcionamento utilitário, procurar prazer, fugir da dor. No êxtase se encontram mil platôs - planos de consistência - momentos onde o complexo corpo-mente dedica-se simplesmente a SER. "Um platô é um pedaço de imanência", e imanência é "ser em si mesmo".
Como é simplesmente SER?
Há infinitas formas, cada uma com suas implicações. Cada êxtase tem suas implicações próprias.
É muito fácil de entender. O ÊXTASE É UMA FESTA.
No cotidiano, estamos sempre fazendo uma coisa visando em mente outra coisa. Preciso acordar pra tomar banho, para comer, para ir estudar/trabalhar, para ganhar dinheiro, para voltar pra casa, para, para, para dormir e acordar & etc. O momento onde finalmente saimos disso normalmente é a festa. (1) Nesses momentos especiais, dedicamo-nos a não fazer nada de específico, a simplesmente derivar. Normalmente é necessário que haja certa circulação, e muito da festa é simplesmente circular, pernambular. As conversas se espiralam em fragmentos. Frequentemente as pessoam dançam, e a dança é um poderoso indutor de êxtase. A festa é um espaço de recriação de relações sociais - lá surgem brigas, amizades, parcerias em corres, projetos. Você nem precisa chamar de "festa" para fazê-la - e aliás, mesmo que você convide as pessoas para uma "festa", ela pode não acontecer. A força do hábito - a automatização cotidiana - pode suplantá-la, e as pessoas reunidas numa "festa" criam um corpo vazio, faltoso, um espaço que "falta" uma função (porque mesmo estou aqui?). O êxtase é essa abertura à imanência da experiência; ao fluir vital, que é reinvenção; o êxtase, assim como a festa bem feita, abre perspectivas.
As forças de zumbificação cotidianas incidem TRANSCENDENTES sobre o fluir vital. (Entenda transcendente como o oposto de imanente). Como escapar a elas, e fazer como que ocorra a invenção, a abertura dos corpos à imanência de seu potencial criativo? Como evitar que falte SENTIDO? Essa é a questão da Festa, e a questão do Êxtase. (É também a questão de Deleuze e Guattari, que chamam o êxtase de "Corpo Sem Orgãos", CsO. Aliás, todas as citações sem referência, aqui, são deles).
Ao contrário da "festa social" - você pode induzir o êxtase "sozinho" também (pois como todo mago ensina, você tem o universo dentro). E com dedicação e gênio isso pode ser refinado ao limite. As implicações, em cada caso...
"O campo de imanência ou plano de consistência deve ser construído; ora ele pode sê-lo em formações sociais muito diferentesm e por agenciamentos muito diferentes, perversos, artísticos, científicos, místicos, políticos, que não têm o mesmo tipo de corpo sem orgãos."
O êxtase passa, mas deixa suas marcas. Através dele o corpo e a mente se transformam, as vezes em níveis muito profundos.
Camille Flammarion, 1888 (link) |
Todos os povos inventaram/descobriram o êxtase, de uma forma ou de outra. E até certa altura de nossa pré-história, e até certa altura ainda hoje, o êxtase era absurdamente valorizado como MÉTODO DE CONHECER.
Todo tipo de símbolo, artifício, intervenção foi criado de forma a garantir que a maioria possível das pessoas passassem por experiências extáticas, preferencialmente ainda jovens. Para muitas culturas, se uma pessoa era incapaz de experienciar o êxtase - essa pessoa era intrinsicamente limitada.
O xamã, como vimos na parte 1, é um técnico do êxtase. O papel do xamã permite que 1-o êxtase funcione socialmente como forma de invenção cultural;
2-experiências extáticas acidentais sejam conduzidas a se estruturar em agenciamentos mais potentes, por exemplo: conduzir pessoas que de outra forma poderiam se tornar "esquizofrênicos", "junkies" a expandir sua experimentação e colocá-la em articulação com o entorno;
3-incentivar a proliferação da ciência do êxtase, o aprimoramento do Conhecer através da experiência extática.
Além disso, claro, o xamã cura, viaja no mundo invisível, encontra caça, etc. Ou assim dizem. Aliás...
SEMPRE DISSERAM. Todos os povos sem exceção nenhuma inventaram a magia. Todo mundo sempre soube que essa porra existe! Só nós, em nossa absurda arrogância, decidimos arbitrariamente contra a magia. E isso fizemos pois esquecemos o êxtase.
É preciso, porém, compreender que há uma diferença entre o discurso dos não-magos sobre a magia, e aquele que é feito pelos próprios magos. E mesmo em cada um desses casos, há graus diferentes de elaboração. Há apreensões muito ingênuas da magia - há pessoas que pensam que ela funciona de uma forma objetiva. Mas esses, frequentemente, estão de fora - ou são inciantes. Os feiticeiros realmente viram serpentes ou jaguares (ou qualquer coisa), porém em outro plano que não o dos objetos. Simple as that. Porém, (e o que só pode se verificar pela experiência), os planos estão todos interligados. Não acredite em minhas palavras; isto é inútil. É necessário experienciar o êxtase. Sempre se soube disso.
As civilizações e religiões organizadas chegaram para acabar com a festa. Em um processo lento e fatal, o êxtase foi arrastado para as margens pelo projeto de controle e transcendência que é o Poder. As diversas ciências do êxtase encontraram ou não sua forma de se adaptar à essa situação, algumas se territorializaram nas margens, sobrevivendo em mosteiros, algumas se ocultaram à plena vista como as religiões de Mistérios (ex. Eleusis), outras foram erradicadas. A "filosofia" derivou para muito longe do que um dia foi - da sabedoria de um extático natural como Sócrates, do conhecimento iniciático (& extático) de Zenon e Heráclito - até uma arte morta de reorganização de palavras com Descartes, Kant, etc. Porfim - chega o discurso objetivista se propondo único, absoluto, científico - e não há problema em se fazer ciência "objetiva" - mas é que uma vez viver foi também muito mais que pensar objetos, houve um tempo onde o Conhecer se estendia também sobre os outros planos. O Conhecer do plano material permite que façamos ciência de objetos; o Conhecer de outros planos permite que façamos ciência do sentido.
O êxtase é a plataforma para a construção das diversas ciências do sentido possíveis.
fonte: desconhecida |
A palavra SENTIDO possui uma deliciosa ambiguidade. A física, para começar, recorre a esta palavra na descrição de seus vetores: "direção" determina o ângulo ou eixo de incidência do vetor (norte-sul, por exemplo), enquanto o "sentido" imputa ao vetor o movimento, determinando se é a norte ou a sul que ele exerce sua força.
Isso já ressoa com outro sentido da idéia de SENTIDO, dessa vez entendido como componente da experiência humana: sem sentido - experiência em vão, inútil, desfocada; com sentido - experiência dotada de propósito, animado por uma força. Me contaram uma vez que a URSS colocava 'criminosos' na Sibéria pra cavar buracos e depois tapá-los, e a ausência de sentido deste esforço era enlouquecedora para os cativos. Em compensação, quando percebemos sentido em um esforço - de quanta força somos dotados para realizá-lo! A dor 'com sentido' é fácil de encarar; a dor 'sem sentido' é capaz de nos destruir.
Porfim, SENTIDO é aquilo que sentimos, aquilo que é sentido - e portanto uma ciência do SENTIDO é uma ciência do percebido, da própria percepção. Uma ciência do Conhecer - Conhecer o Conhecer. É esta capacidade de formar um 'loop' em nossa percepção que nos distingue de todos os outros animais, e está na essência da meditação.
Uma ciência objetiva é fraca em produzir sentido; é boa em construir foguetes, microondas, antibióticos e modelos pra entendermos como as coisas caem. Já a poesia, a mitologia, etc - são excelentes em produzir sentido, porém bastante ruins em construir foguetes. Na medida em que excluímos todos os outros planos de nossa ciência, de nosso discurso oficial, conseguimos precisamente uma civilização zumbificada, objetificada, consumista, sem sentido. "A arte" - entendida como uma série de maquinações extáticas pra produção de sentido - é igualmente objetificada quando é colocada sob o guarda-chuva das grandes empresas (nas indústrias editoriais, fonográficas, nas leis de incentivo, etc). As grandes religiões organizadas se apropriam desta 'pobreza de espírito' para vender suas pílulas pros desesperados: êxtases pobres (exaltações histéricas sentimentalóides estilo torcida-de-futebol) - explicações míticas do universo extremamente ingênuas, anti-científicas (pois dogmáticas, anti-empíricas), que reduzem a potência do convertido e o mantem sob submissão da mediação sacerdotal.
Todos perseguimos a felicidade; muitos a entendem como 'mais alegria, menos tristezas'. Porém, acatar esse significado nos coloca a mercê da nossa mente-de-sobrevivência; estreitamos nosso plano de experiência e acreditamos demais nas alegrias e tristezas passageiras.
A mente-de-sobrevivência deve bem maquinar prazeres e dores, mas a vida... A vida é mais que isso, inclui necessariamente a morte, a dor, a perda - para que haja mais vida, outra vida, sempre e sempre. A inevitabilidade da dor e da morte nos impele a conquistar uma perspectiva mais ampla, que compreenda tanto os prazeres e dores do corpo-mente sobrevivente, o seu direito de buscá-los, e mais, mais ainda - sentir-se parte de um sistema maior, algo que nos transcende e nos inclui, um pequeno fragmento operante e conectado de um grande universo operante e conectado. Não basta saber disso intelectualmente, isto precisa ser SENTIDO...! E se isto é SENTIDO, quão mais fácil encarar as dores, e quão mais intensos os prazeres! Uma vida que tem SENTIDO não deixa arrependimentos, ela encerra-se em sua própria imanência, é portanto - uma vida feliz, independente de tudo mais.
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Estender uma única categoria como o "êxtase" nos permite colocar em conexão práticas das mais diversas. Acompanho aqui o que fazem Deleuze e Guattari através de seu conceito de Corpo sem Orgãos, que nos permite entender a sintonia mais profunda entre os devires da feitiçaria, os planos moleculares das 'drogas', a sub-zone dos submissos e masoquistas, os corpos desorganizados dos esquizofrênicos, as práticas taoístas, o amor cortês, etc. Contudo, cada um desses corpos conduz a resultados singulares, então cabe às ciências do êxtase discriminar entre quais planos são articulados através de cada êxtase, e com que consequências. Faz-se necessário então mais um post, para explicar (em um exemplo) como nosso corpo-mente pode ser colocado em relação com o êxtase, e como fazer disso uma fonte de sentido. Parte 3, em breve.
(1) uma coisa pouco mencionada era que na idade média européia - "idade das trevas" - a despeito de toda a pobreza, mais de um terço do ano inteiro era dedicado a feriados, geralmente festivos.
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