terça-feira, 20 de maio de 2014

Daqui a Cinco Mil Anos

Fonte: desconhecida

Se tem algo que a auto-observação atenta me revelou, é que: O corpo é memória. O corpo, que digo, é um corpo monista. inclui também a mente e o cérebro.

Ainda à flor da pele moram as memórias recentes; já nos recessos mais profundos dos músculos estão travadas as memórias dolorosas da infância, de cada choro que tivemos de engolir, de cada humilhação que suportamos em vias de conservar o amor e cuidado de nossos pais. O corpo expressa a todo momento a sua história, com suas cicatrizes, movimentos e criações. O corpo já nasce sendo gravado de memória por todos os lados - pelas instituições sociais que o recebem no mundo; pelos corpos dos pais e familiares; e também pela linguagem. Nosso parto é só mais um argumento em linhas de fissura ancestrais, indivíduo x sociedade, natural x social, razão x emoção, homem x mulher, céu x terra. Cada parto humano uma síntese desse debate, e cada síntese uma solução apenas parcial pros velhos dilemas, recriando o debate a partir daquilo que se manteve ainda insolúvel.


O corpo tem seu próprio tempo. Ao nível da mente consciente as coisas se resolvem ao passo da canetada, nos modos de um Estado nacional; mas - estou certo - já passamos todos pela experiência de uma decisão mental que não vinga, onde o corpo se insurge e persiste na inércia de seus condicionamentos. É como quando Estados aprovam uma lei sem verdadeira adesão, e fica só no papel.

É por essas razões que não se solucionam problemas profundos através apenas de mudanças na política institucional. Mesmo a derrocada do estado de nada vale, se os corpos tem em si gravado em brasa a servidão, e neste caso - como visto em inúmeras revoluções - tratarão logo em seguida de reinventá-la segundo os modos de seu condicionamento. Para uma verdadeira revolução precisamos mais do que reorganizar as aparências, ao nível da pele; é preciso atingir os músculos, quiçá os ossos, de nossas memórias, e reverter os condicionamentos um por um a partir daí.
Temos em nossos corpos a herança de dez mil anos de opressão sistemática com o intuito de nos domesticar. Dez mil anos, ou mais, de patriarcado; de processo civilizador; de reis nos céus amarrando a terra a seus desígnios. Pode-se supor que isso tenha sido bom, necessário, ou providencial; mas é inegável que isso lançou longas sombras sobre nossos processos vitais elementares. "Tendo destruído a floresta escura, o homem tratou logo então de tornar-se ele mesmo a floresta escura" - cito Nietzsche de cabeça. Dez mil anos de Poder, e mais dois mil de culpa, perseguição à energia sexual e à magia, e negação da matéria.

É impossível desfazer 10 mil anos em vinte.

Pelo seu próprio impulso, a soma das opressões acumuladas nos levará à derrocada da civilização (ao menos como a conhecemos) e além. Os que negam isso têm os olhos fechados; ou não conheceram a verdadeira face do "progresso", nas crateras de mineração, nas centenas de quilômetros de monocultura venenosa, no ecocídio e erradicação das espécies não-humanas, nas favelas onde os pobres são forçados a conviver diariamente com nosso refugo material, emocional-energético e político. Tente conversar sobre isso - "o fim do mundo" - com as pessoas, e perceberá que em sua maioria não irá arredar o pé do lugar enquanto puder conservar uma mínima zona de conforto. Somos bilhões e crescendo em número a cada dia, e as opressões continuarão a se multiplicar, agravadas pela crise ambiental. Só haverá mudança real e maciça (neste quesito) no dia em que a civilização cair de tropeço enfiando a cara na lama. Triste que tenha de ser desta forma... Mas o fim de algo tão desequilibrado só pode ser algo bom.


Essas reflexões não são um convite à resignação. Tento medir a vastidão de nosso problema, traçar suas coordenadas, de forma a poder pensar o que pode tornar essa transição o menos dolorosa possível, o que pode contribuir para que nos ergamos reequilibrados o mais cedo possível. Ao invés de militar por causas políticas pontuais e momentâneas - que durarão 4 anos até a próxima eleição, ou 20 até outro golpe militar - tem me parecido mais proveitoso investir no futuro, como ninguém está fazendo. Empresários e políticos enxergam a curtíssimo prazo, e é nas mãos deles que está o Poder. Precisamos olhar através da civilização desmoronante, através do senso de auto-importância das Cidades, com os pés firmemente equilibrados no chão, e começar a caminhar desde já rumo a um local onde queiramos de corpo todo chegar. Podemos pensar grande: o fim do patriarcado, a remoção da culpa cristã da alma humana, a redescoberta do sagrado imediato, a recontextualização do corpo humano em meio à trama vital que o sustenta. Não importa se demorar ainda cinco mil anos; o importante é semear desde agora a nossa libertação, dia após dia, pois mesmo seus resultados parciais mais do que "pagam" o esforço envolvido na empreitada.

Quais são as sementes que podemos plantar hoje e que causarão resultados duradouros o suficiente para sobreviver à queda do império? Este é o ponto de partida que proponho para reflexão.

~Pan

(originalmente postado na wiki da Elástica)

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