"Darkstar Journey", Larry Carlson |
Da parte destes marxistas, "trabalho" é o esforço socialmente organizado pra atender as necessidades materiais. Seria portanto algo universal, já que todos comem, e arcos-e-flecha não caem de árvores. As conotações negativas que a palavra "trabalho" me evocam seriam referentes apenas ao trabalho alienado, nas condições do capital (e, presumo, também da servidão pré-capitalista).
Eu questionava até onde era possível dizer deste "universal" sem com isso atropelar a alteridade. O que eu dizia é que os recortes que eles traziam, ao construir esse "universal", não eram nada universais, partiam aliás de concepções bem particulares à vivência do proletariado europeu do século XIX, pressupondo um "sujeito humano" essencialmente distinto da "natureza", que usa a "cultura" para "moldar" a segunda. Ao invés de discutir nesses termos, preferi dedicar-me a esburacar essas concepções, denunciando sua particularidade, para quiçá recomeçar a conversa em outros termos.
Pra eles, questionar a pertinência do "trabalho" como universal humano equivale a negar a objetividade do problema que levantavam, e das soluções então elencadas. Era portanto apenas um ilusionismo mal intencionado, um "pós-modernismo" (embora eu tenha feito questão de frisar que estou cônscio da existência da servidão, no capitalismo e na civilização, e de seus cruciais efeitos perversos). Repetidamente ironizaram meu emprego da palavra agenciamento, insinuando que eu acreditava que trocar uma palavra por outra mudaria algo da realidade. (2) E de fato, à maneira de magos e xamãs all around, creio que palavras fazem sim diferença.
Quando proponho o conceito de agenciamento, busco pensar relações que não se reduzem à sujeitos-moldando-objetos, e sim relações que surgem em tramas de mútua afetação, onde as fronteiras entre sujeito, objeto, natureza e cultura, não possuem realidade ontológica a priori, sendo apenas categorias analíticas mais ou menos convenientes que podemos usar pra recortar provisoriamente um mundo em devir. Pensar agenciamentos é pensar sem recurso a essências, relação entre seres que por sua vez são também relações; relação de relações.
No exemplo citado, "um índio produz um arco com seu trabalho", me parece mais econômico em pressupostos pensar que a madeira de certas árvores, a pedra ou o metal de certas facas, o braço e a mão do índio e certos códigos culturais entram todos em um agenciamento "máquina-de-fazer-arco-e-flecha". Mas a madeira não entra nunca isolada, ela entra junto à árvore toda, junto a um clima, uma estação do ano, às tramas vitais que possibilitam (ou dificultam) seu crescimento; a faca não entra isolada, mas carrega em si (por ex.) as relações sociais e ecológicas de sua produção, e idem para o índio, que trás sua subjetividade, sua história, sua biologia, suas intenções, etc. O recorte "um índio trabalha a madeira" diz alguma coisa da situação, mas recorta e invisibiliza muitas outras, e faz parecer que os termos da relação são entes em-si, auto-produzidos, auto-explicáveis e facilmente destacáveis das relações que os compõem... Mas quando você vai olhar de perto, cada "ente" é apenas parte (resultante e co-produtora) de tramas de relação que, seguidas até o fim, envolvem todo o universo. Ou seja, sujeitos e objetos não servem de explicação, aliás, pedem explicação: porque recortar aqui, e não ali? Quem ou o que é feito invisível pra que apenas eles sejam visíveis? Quais fissuras são ignoradas para fazê-los parecer entes auto-produzidos e auto-explicativos?
O que quero dizer é que é impossível isolar a "satisfação de necessidades materiais", dito "trabalho", dos espíritos da floresta que este hipotético índio vê envolvidos na produção de arcos; dos ancestrais que entende estar a observá-lo a cada facada; etc. São cruciais para ele o sentido simbólico ou ritual imputado à árvore envolvida, ao ato de cortar, e às finalidades do arco-e-flecha! Talvez não houvessem arcos (e sim lanças) não fossem os espíritos, ou talvez outra árvore fosse agenciada, com implicações econômicas e sociais bastante reais. E se não faz sentido separar o arco dos espíritos, então todas as atividades ditas "imateriais" ou "subjetivas", como a reza, os rituais, a pajelança, estão implicadas no agenciamento índio-fazendo-arco; se ignorarmos isso, não há nem remota chance de entender o que o índio está fazendo. A mesma coisa vale pra árvore, ou pra faca; se o clima fosse outro, talvez sua madeira fosse inútil para fazer arcos, de modo que o clima é "sujeito" também da produção destes arcos, e por sua vez "objeto" ou resultante da atividade humana e não-humana que o compõe.
A ambição destes marxistas é simplificar o mundo até seus componentes "objetivos". Segue assim: a servidão humana no trabalho alienado é objetiva e indesejável; é o que temos em comum; se pudermos portanto nos unir por isso, e resolver a apropriação privada dos meios de produção, poderemos voltar a trabalhar de forma não-alienada, e então sobrará tempo pra todas essas subjetividades. Como o problema é de ordem objetiva, então não há necessidade de muita discussão (e quem quer pensar demais é ilusionista); é preciso apenas levar as boas-novas às pessoas (que ainda não perceberam estar sendo exploradas).
Porém essas esperanças serão frustradas, e digo isso de boca cheia: SEMPRE frustradas, pois é impossível recortar analiticamente uma camada inteira do mundo e operar sobre ela efetivamente como se fosse realmente isolada. (3) Você consegue fazer isso, e olhe lá, com problemas mecânicos superficiais. Tente tratar uma relação de ordem passional-amorosa-sexual, por exemplo, com esta objetividade: você tem o eterno drama de "marte e vênus" que enche as prateleiras de auto-ajuda. Uma relação de amor não é um mecanismo que pode ser consertado trocando uma peça isolada; ela implica a totalidade do ser, inclusive as partes inconscientes, inclusive os aspectos intangíveis (e absolutamente cruciais) como confiança e poesia, até mistérios irresolvíveis como o tal "sentido da vida". E toda essa abstração não-objetiva não impede as pessoas em absoluto de se engajarem em relacionamentos, embora nossa incapacidade de acessar cada intangível em seu próprio plano resulte em relações de péssima qualidade.
Este par de marxistas
(1) Ao fim, e apesar do desgaste, saí entusiasmado - tendo decidido retomar os estudos com força total, pra quiçá conseguir explicar minhas idéias até mesmo pra quem não quer me entender.
(2) Irônico que todo o debate surgiu do questionamento, por parte minha e de outros pós-estruturalistas, à pertinência do conceito de "trabalho" para pensar situações fora da esfera do capital e da civilização, e da reação virulenta que encostar nessa palavra causou nestes marxistas. Ou seja, as palavras ~ dos outros ~ é que são irrelevantes...
(3) O problema é que quando você vai juntar as pessoas em uma empreitada objetiva comum, toda sorte de complicações subjetivas surgem; um tem preguiça, outro mente compulsivamente, outro só aparece bêbado, outro é evangélico e odeia macumbeiro, outro fala demais no microfone e geral prefere ver TV a ouvir palestra de chatos, etc. E mesmo que isso tudo seja contornado, o problema das subjetividades se recoloca na hora de organizar a produção segundo as necessidades; como estabelecer quais são essas necessidades de cada, quem trabalha quanto e com que trabalho, quem assegura que se cumprem os combinados, o que fazer com os casos marginais, ou preguiçosos, ou mentirosos compulsivos etc. A solução "objetiva" típica é resolver de cima pra baixo, e pau em quem discorda.
(4) A aceitação da boa-nova marxista envolve a divulgação de uma "interpretação pré-fabricada" pros fenômenos subjetivos ou intangíveis; era só "ideologia", os sacerdotes inventaram essa porra toda pra te manter servil. É preciso portanto converter todo mundo ao materialismo dialético para possibilitar a salvação. Claro que é possível discutir os agenciamentos "religiosos" socialmente conformistas, inclusive pra opor-se a eles... Mas a ânsia de interpretar a totalidade da vida espiritual, já de partida, me parece mais uma tentativa de recortar-para-fora este aspecto da vida, aliás tão crucial para quase todo mundo da terra.
(5) De partida, posso dizer que tratar as próprias categorias analíticas como sendo iguais à "objetividade" é um mau começo, prenunciando já um silenciamento das linguagens discordantes ("quem pensa diferente deve ser porque tá com o inimigo")
Muito bom!
ResponderExcluirÓtima análise!
ResponderExcluir