quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Os arco-e-flecha que caíram do céu

"Darkstar Journey", Larry Carlson

Recentemente discuti com uns marxistas no website Feice, uma dupla particularmente grossa, rendendo 250 posts e além. Enquanto meus amigos me perguntavam "porque diabos você tá perdendo seu tempo?", eu assentia sem resposta. Mas meu coração disse "siga" e eu fui (1). Tudo girava ao redor da noção de "trabalho", que supunham de pertinência universal, e do valor (ou desvalor) dos pós-estruturalismos antropológicos à-la Eduardo Viveiros de Castro.

Da parte destes marxistas, "trabalho" é o esforço socialmente organizado pra atender as necessidades materiais. Seria portanto algo universal, já que todos comem, e arcos-e-flecha não caem de árvores. As conotações negativas que a palavra "trabalho" me evocam seriam referentes apenas ao trabalho alienado, nas condições do capital (e, presumo, também da servidão pré-capitalista).

Eu questionava até onde era possível dizer deste "universal" sem com isso atropelar a alteridade. O que eu dizia é que os recortes que eles traziam, ao construir esse "universal", não eram nada universais, partiam aliás de concepções bem particulares à vivência do proletariado europeu do século XIX, pressupondo um "sujeito humano" essencialmente distinto da "natureza", que usa a "cultura" para "moldar" a segunda. Ao invés de discutir nesses termos, preferi dedicar-me a esburacar essas concepções, denunciando sua particularidade, para quiçá recomeçar a conversa em outros termos.


Pra eles, questionar a pertinência do "trabalho" como universal humano equivale a negar a objetividade do problema que levantavam, e das soluções então elencadas. Era portanto apenas um ilusionismo mal intencionado, um "pós-modernismo" (embora eu tenha feito questão de frisar que estou cônscio da existência da servidão, no capitalismo e na civilização, e de seus cruciais efeitos perversos). Repetidamente ironizaram meu emprego da palavra agenciamento, insinuando que eu acreditava que trocar uma palavra por outra mudaria algo da realidade. (2) E de fato, à maneira de magos e xamãs all around, creio que palavras fazem sim diferença.


Quando proponho o conceito de agenciamento, busco pensar relações que não se reduzem à sujeitos-moldando-objetos, e sim relações que surgem em tramas de mútua afetação, onde as fronteiras entre sujeito, objeto, natureza e cultura, não possuem realidade ontológica a priori, sendo apenas categorias analíticas mais ou menos convenientes que podemos usar pra recortar provisoriamente um mundo em devir. Pensar agenciamentos é pensar sem recurso a essências, relação entre seres que por sua vez são também relações; relação de relações.

No exemplo citado, "um índio produz um arco com seu trabalho", me parece mais econômico em pressupostos pensar que a madeira de certas árvores, a pedra ou o metal de certas facas, o braço e a mão do índio e certos códigos culturais entram todos em um agenciamento "máquina-de-fazer-arco-e-flecha". Mas a madeira não entra nunca isolada, ela entra junto à árvore toda, junto a um clima, uma estação do ano, às tramas vitais que possibilitam (ou dificultam) seu crescimento; a faca não entra isolada, mas carrega em si (por ex.) as relações sociais e ecológicas de sua produção, e idem para o índio, que trás sua subjetividade, sua história, sua biologia, suas intenções, etc. O recorte "um índio trabalha a madeira" diz alguma coisa da situação, mas recorta e invisibiliza muitas outras, e faz parecer que os termos da relação são entes em-si, auto-produzidos, auto-explicáveis e facilmente destacáveis das relações que os compõem... Mas quando você vai olhar de perto, cada "ente" é apenas parte (resultante e co-produtora) de tramas de relação que, seguidas até o fim, envolvem todo o universo. Ou seja, sujeitos e objetos não servem de explicação, aliás, pedem explicação: porque recortar aqui, e não ali? Quem ou o que é feito invisível pra que apenas eles sejam visíveis? Quais fissuras são ignoradas para fazê-los parecer entes auto-produzidos e auto-explicativos?

O que quero dizer é que é impossível isolar a "satisfação de necessidades materiais", dito "trabalho", dos espíritos da floresta que este hipotético índio vê envolvidos na produção de arcos; dos ancestrais que entende estar a observá-lo a cada facada; etc. São cruciais para ele o sentido simbólico ou ritual imputado à árvore envolvida, ao ato de cortar, e às finalidades do arco-e-flecha! Talvez não houvessem arcos (e sim lanças) não fossem os espíritos, ou talvez outra árvore fosse agenciada, com implicações econômicas e sociais bastante reais. E se não faz sentido separar o arco dos espíritos, então todas as atividades ditas "imateriais" ou "subjetivas", como a reza, os rituais, a pajelança, estão implicadas no agenciamento índio-fazendo-arco; se ignorarmos isso, não há nem remota chance de entender o que o índio está fazendo. A mesma coisa vale pra árvore, ou pra faca; se o clima fosse outro, talvez sua madeira fosse inútil para fazer arcos, de modo que o clima é "sujeito" também da produção destes arcos, e por sua vez "objeto" ou resultante da atividade humana e não-humana que o compõe.

A ambição destes marxistas é simplificar o mundo até seus componentes "objetivos". Segue assim: a servidão humana no trabalho alienado é objetiva e indesejável; é o que temos em comum; se pudermos portanto nos unir por isso, e resolver a apropriação privada dos meios de produção, poderemos voltar a trabalhar de forma não-alienada, e então sobrará tempo pra todas essas subjetividades. Como o problema é de ordem objetiva, então não há necessidade de muita discussão (e quem quer pensar demais é ilusionista); é preciso apenas levar as boas-novas às pessoas (que ainda não perceberam estar sendo exploradas).



Porém essas esperanças serão frustradas, e digo isso de boca cheia: SEMPRE frustradas, pois é impossível recortar analiticamente uma camada inteira do mundo e operar sobre ela efetivamente como se fosse realmente isolada. (3) Você consegue fazer isso, e olhe lá, com problemas mecânicos superficiais. Tente tratar uma relação de ordem passional-amorosa-sexual, por exemplo, com esta objetividade: você tem o eterno drama de "marte e vênus" que enche as prateleiras de auto-ajuda. Uma relação de amor não é um mecanismo que pode ser consertado trocando uma peça isolada; ela implica a totalidade do ser, inclusive as partes inconscientes, inclusive os aspectos intangíveis (e absolutamente cruciais) como confiança e poesia, até mistérios irresolvíveis como o tal "sentido da vida". E toda essa abstração não-objetiva não impede as pessoas em absoluto de se engajarem em relacionamentos, embora nossa incapacidade de acessar cada intangível em seu próprio plano resulte em relações de péssima qualidade.

Outro ~porém~ é que as pessoas em geral sabem bem que estão sendo exploradas, ou, quando discursivamente o negam, basta uma dose de sensibilidade e persistência pra que a realidade emerja, uma vez que ela é necessariamente sentida pelo corpo. Não precisamos de messianismo soteriológico, ponto. Se a questão fosse meramente objetiva, o Poder já teria sido destruído pela rebelião dos escravos há muito tempo. Mas os escravos não sabem o que fazer sem o Poder, eles dependem dele. Eles dependem da polícia, eles dependem dos políticos para legitimar sua "preguiça existencial" (como propõe Nelson Job em seu Ontologia Onírica), diques no devir. É mais cômodo um papel seguro de servidão que viver em risco, e morrer lutando... Não que isso seja "universal"; há muita resistência ao Poder, e resistentes; e aliás, as subjetividades mais efetivamente indomáveis foram e são assassinadas, ou internadas e forçosamente medicadas. O que quero dizer é que as condições da resistência ao Poder, de um lado, e a subjugação, do outro, são sobretudo de ordem subjetiva, da produção (pela família, escola, exército, psiquiatria, marketing, etc) de subjetividades domesticadas, e vão envolver questões de diversas ordens, inclusive espirituais ou cosmológicas (4). E por estas razões re-coloco o problema: porque as revoluções comunistas redundaram em aparatos de controle e subjugação em quase todos os casos - com a brilhante exceção dos zapatistas? (5) O que tem os zapatistas de diferente dos outros casos? Eu arrisco dizer que eles são herdeiros de subjetividades singulares, de seus próprios intangíveis, que os conduzem mais à auto-gestão que ao estado vertical... Há aí um diálogo possível e necessário com Wilhelm Reich, com as sutilezas da etnologia, e além ainda, bem além...

Este par de marxistas (e tantos outros!) definem "o problema" usando as ferramentas do inimigo, ie., da constituição ontológica européia que pensa como absolutamente separados a natureza e a cultura, o sujeito e o objeto, para então - pior ainda - reduzir o problema à apenas metade do universo, como se fosse possível separar as coisas de forma não-problemática. Pode ter sido, ou mesmo ser (em dado contexto), um saber útil aos operários que o elaboraram, de fácil comunicação e entendimento entre eles, e conduzindo a mudanças práticas efetivas. Porém, para que comecemos a conversar por fora do cercadinho do inimigo, para além aliás das pessoas já proletarizados e europeizados, para além das pessoas "normais", é preciso aprender a pensar por fora das caixas que os senhores nos legaram, e nesse quesito, eu quero sim entender os termos pelos quais os daí "recortados" (por ex. as subjetividades indomadas de índios, mas também dos clinicamente loucos, hippies preguiçosos, bruxas bailarinas, yogins e tântrikos, marginais e outsiders), enfim, como diversamente articulam mundos, objetivos, subjetivos e possíveis, para quiçá criarmos juntos um projeto que esteja em ruptura radical com a lógica do capital e da servidão civilizada.



(1) Ao fim, e apesar do desgaste, saí entusiasmado - tendo decidido retomar os estudos com força total, pra quiçá conseguir explicar minhas idéias até mesmo pra quem não quer me entender.

(2) Irônico que todo o debate surgiu do questionamento, por parte minha e de outros pós-estruturalistas, à pertinência do conceito de "trabalho" para pensar situações fora da esfera do capital e da civilização, e da reação virulenta que encostar nessa palavra causou nestes marxistas. Ou seja, as palavras ~ dos outros ~ é que são irrelevantes...

(3) O problema é que quando você vai juntar as pessoas em uma empreitada objetiva comum, toda sorte de complicações subjetivas surgem; um tem preguiça, outro mente compulsivamente, outro só aparece bêbado, outro é evangélico e odeia macumbeiro, outro fala demais no microfone e geral prefere ver TV a ouvir palestra de chatos, etc. E mesmo que isso tudo seja contornado, o problema das subjetividades se recoloca na hora de organizar a produção segundo as necessidades; como estabelecer quais são essas necessidades de cada, quem trabalha quanto e com que trabalho, quem assegura que se cumprem os combinados, o que fazer com os casos marginais, ou preguiçosos, ou mentirosos compulsivos etc. A solução "objetiva" típica é resolver de cima pra baixo, e pau em quem discorda.

(4) A aceitação da boa-nova marxista envolve a divulgação de uma "interpretação pré-fabricada" pros fenômenos subjetivos ou intangíveis; era só "ideologia", os sacerdotes inventaram essa porra toda pra te manter servil. É preciso portanto converter todo mundo ao materialismo dialético para possibilitar a salvação. Claro que é possível discutir os agenciamentos "religiosos" socialmente conformistas, inclusive pra opor-se a eles... Mas a ânsia de interpretar a totalidade da vida espiritual, já de partida, me parece mais uma tentativa de recortar-para-fora este aspecto da vida, aliás tão crucial para quase todo mundo da terra.

(5) De partida, posso dizer que tratar as próprias categorias analíticas como sendo iguais à "objetividade" é um mau começo, prenunciando já um silenciamento das linguagens discordantes ("quem pensa diferente deve ser porque tá com o inimigo")

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