Em comemoração ao feriado thelêmico dos 3 dias da escrita do Livro da Lei, decidi compartilhar com vocês uma divinação (e sua análise) que realizei através do I-Ching. A pergunta é:
Qual a pertinência do Livro da Lei para a humanidade?
Como nem todo mundo tá por dentro do que estou falando, começo explicando o que é o I-Ching, e o que é o Livro da Lei.
O I-Ching, ou Clássico (Ching) das mutações (I) é um método de divinação chinês, que tem sua origem em tempos imemoriais. Foi codificado como um dos cinco "Clássicos" pela escola Confuciana, no século II a.C. É composto de 64 hexagramas, cada qual representando um "tempo" das mutações da natureza; cada hexagrama é por sua vez composto de 6 linhas, que podem ser, cada uma, Yin (fraca/sombria) ou Yang (forte/luminosa). Durante a dinastia Chou (1150-249 a.C.) os hexagramas receberam textos (o "Julgamento" e a "Imagem", que teria sido escrito pelo fundador da dinastia, Rei Wen, e o texto das linhas móveis, obra de seu filho Duque de Chou). A divinação pelo I-Ching é tradicionalmente feita ou por moedas, ou por um complexo método usando 50 varetas de miefólio (1). O resultado tipicamente é um primeiro hexagrama, com algumas linhas móveis, formando um segundo hexagrama. Portanto, a divinação pelo I-Ching descreve de uma só tacada a situação, o que está mudando (ou não), e o resultado. Os textos oferecem sugestões quanto ao que seria o comportamento "superior" e "inferior" em cada tempo da natureza.
O Livro da Lei (ou "Liber AL vel Legis") foi reportadamente ditado por uma entidade chamada Aiwass ao ocultista britânico Aleister Crowley (auto-intitulado Besta do Apocalipse), em sua passagem pelo Cairo em 1904, e serviria de anúncio de um "Novo Aeon" (algo como "nova era"). É composto de três capítulos, cada um enunciado por uma "persona divina" diferente - Nuit, a Rainha do Espaço cujo corpo é a Circunferência do céu estrelado; Hadit, a Serpente Flamejante, que simboliza o ponto infinitesimal, em toda parte o eixo, o Centro da roda; e Ra-Hoor-Khuit, um aspecto do Deus-falcão Horus, que seria fruto da união de Nuit e Hadit, e o "Senhor da Iniciação" durante esta era. O livro é recheado de arroubos poéticos e cifras misteriosas. Como o nome do Crowley é bem pixado (muito pela vida locca que ele levou), é mais uns doidos esparsos (como eu) que dão crédito pro Livro da Lei - que ao meu ver, contém não só formulas místicas totalmente novas (rompendo tanto com as tradições quanto com as limitações das convenções modernas), mas serve também como um guia prático de como se virar no fim do mundo. Fato curioso é que o próprio Crowley foi entusiasta do I-Ching, embora em sua época houvessem apenas traduções limitadas e sem orientação quanto aos métodos apropriados para seu uso.
Meu profeta coprófago favorito |
Então novamente, a pergunta que fiz ao I-Ching: Qual a pertinência do Livro da Lei para a humanidade?
O resultado foi o 6º hexagrama, "Conflito", com a segunda e a quarta linha em transição, levando-nos ao 20º hexagrama, "Contemplação".
O primeiro hexagrama descreve portanto a situação da humanidade imediatamente antes da recepção do Livro da Lei, o tempo do
CONFLITO
Sobre este hexagrama, Wilhelm (2) diz: "O trigrama superior, cuja imagem é o céu, tende a subir e o trigrama inferior, a água, tende por sua natureza a descer. O movimento dos dois componentes básicos é divergente, o que gera a idéia de conflito."
("trigrama" é o nome dado pelo primeiro tradutor ocidental do I-Ching aos conjuntos de três linhas. As três linhas de baixo formam o trigrama Kun - tipicamente traduzido por "Água", e as três de cima formam o trigrama Chen, "Céu").
Alto e Baixo estão portanto se dissociando. O que uma vez garantiu a união do alto com o baixo foram as religiões sacerdotais, que operavam como força unitiva e diretiva da sociedade, sustentando uma "comunidade imaginada" (3) que atravessava fronteiras étnicas e perdurava às vicissitudes do poder. O fim do antigo regime trouxe a separação do poder do estado da igreja, criando um novo tipo de estado, que não dispõe da justificativa vertical ou divina para sua autoridade, e sim se propõe como uma soma horizontal da vontade popular. Isto é percebido como uma libertação pela maioria absoluta dos modernos; os antigos liames que amarravam as classes e o estado segundo uma "ordem divina" seriam apenas maquiagens a sustentar o "bom e velho" poder mundano de nobres e clérigos. Seja em uma visão de emancipação democrática, luta de classes, do combate feminino ao patriarcado, ou no combate científico contra a superstição, a modernidade mitifica a si mesma como grande libertadora das obsoletas e injustas restrições impostas de cima para baixo. Estou tentando apresentar a situação de forma neutra, pois não cabe a mim julgar nada disso aqui/agora! - para cada hexagrama (ou "tempo") o Clássico das Mutações propicia seu próprio julgamento. No caso deste hexagrama, o julgamento é o que segue:
"Conflito. Você é sincero e está sendo impedido. Deter-se cautelosamente no meio do caminho traz boa fortuna. Ir até o fim traz infortúnio. É favorável ver o grande homem. Não é favorável atravessar a grande água."
O conflito surge de uma força sincera, ie., alinhada com a verdade, que está sendo bloqueada. Apesar da sinceridade, seguir com o conflito, acirrando as oposições entre o alto e o baixo, traria o infortúnio.
Segundo os comentários tradicionais deste hexagrama, este "grande homem" a quem caberia consultar corresponde à quinta linha - só à partir da posição de vantagem que ela ocupa seriamos capaz de julgar a situação com imparcialidade. Porém, como a 5ª linha não é parte de nosso resultado, podemos considerar que tal solução está além das possibilidades do momento.
O trigrama inferior ("Kun") tem entre seus significados o PERIGO e o MOVIMENTO. Refere-se no caso ao solo movediço da modernidade, em sua "revolução constante" e instável que (ao que tudo indica) nos encaminha a um colapso ecológico. O texto explicita que tentativas ousadas de superar as contradições não são favoráveis, ie., não ajudam a revelar a verdadeira natureza do antagonismo para enfim resolvê-lo.
Wilhelm alerta que atravessar a grande água pode levar-nos a cair no abismo (outro significado de Kun é ABISMAL). Isso nos remete ao diagrama místico da Arvore da Vida, empregado por Crowley (entre outros), onde o Abismo é o fosso que separa o Divino Eterno da esfera do temporal. Cruzar este abismo é o objetivo de todo mago e místico que se preze! Portanto, o I-Ching aponta que neste tempo de conflito, as ferramentas então dadas não são favoráveis à realização mística ou iluminação.
A Imagem deste hexagrama, ainda segundo a tradução de Wilhelm, é:
"O céu e a água movimentam-se em sentido oposto: a imagem do CONFLITO. Assim, o homem superior em todas as suas negociações cuidadosamente considera o começo."
O começo, neste caso, é o início do Novo Aeon, que corresponde à escrita do próprio Livro da Lei. Comentando esta imagem, Wilhelm propõe: "Se os direitos e os deveres são definidos com precisão ou se num grupo as orientações espirituais convergem, a causa do conflito fica, de antemão, eliminada". Ou seja, a questão que se coloca aqui é a de distintas percepções a respeito de direitos e deveres - sejam as tradições do antigo Aeon, com seus ideais e sua moralidade, sejam as dos vários movimentos que vem ganhando força na modernidade, e que prenunciam novos horizontes.
Este é portanto o palco que está armado no momento onde entra o Livro da Lei. São as linhas móveis (mutáveis) que irão nos contar das modificações então abertas pelo Novo Aeon. Continuamos amanhã na parte 2, para enfim encerrarmos com a terceira parte na sexta feira, conclusão dos dias sacros da escrita do Livro da Lei.
(1) Eu mesmo uso um método cunhado pelo Swami Anand Nisarg, chamado "4 Staves Method", que tem a vantagem de emular as probabilidades assimétricas de resultado características do método (mais tradicional, porém mais oneroso) das 50 varetas de miefólio. As instruções para o "4 Staves Method" podem ser encontradas na comunidade de I-Ching do Swami.
(2) Wilhelm é autor da tradução do I-Ching (para o alemão) que acabou por tornar-se a mais famosa; é datada de 1950, contando com uma introdução feita por Carl G. Jung. É a versão que usei de referência para este post.
(3) "Comunidade Imaginada" é um conceito cunhado pelo sociólogo Benedict Anderson em seu livro Imagined Communities - seriam comunidades que existem para além do face-a-face da coexistência local. (em seu livro, ela busca entender o fenômeno do nacionalismo).
eu achei que você ia comentar capítulo por capítulo....
ResponderExcluirmas, gostei muito do texto, estou aguardando o de amanhã. =)