Perguntei ao I-Ching: Qual a pertinência do Livro da Lei para a humanidade?
Na parte 1 deste post, analisei o hexagrama "Sung", Conflito, que expressa a situação da humanidade logo antes da recepção do Livro da Lei. Agora, a parte cremosa!
AS LINHAS:
Quando consultamos o I-Ching, muitas vezes obtemos ênfase em uma ou mais linhas. Isto indica qual aspecto da situação está em mutação; estas linhas se encontram "carregadas" de tensão a tal ponto que invertem sua natureza. Neste caso temos como linhas móveis a 2ª e 4ª (contando de baixo pra cima), duas linhas yang que estão tornando-se yin (são elas as marcadas com os X)
SUNG, "CONFLITO"
O fato de termos duas linhas sugere uma correlação com os "dois lados" em conflito. Até agora tratamos as rupturas e inovações da "modernidade" com certa indefinição. A razão é que este é um ponto espinhoso. O Livro da Lei expressa claramente, no terceiro capítulo, que Ra-Hoor-Khuit veio trazer a vingança, e lidará duramente com "eles". Mas quem são "eles" afinal? A coisa se torna mais confusa quando consideramos que Hadit, no segundo capítulo, afirma repetidamente que sua doutrina é para os Reis, recomendando que se pise nos frascos & comprimidos - "os senhores da terra são nossos parentes". Por outro lado, Hadit contende que "não há teste exato" de que um mendigo não seja um Rei disfarçado. Ou seja, a nobreza em questão não tem nada a ver com os sinais sociais, visíveis, de status. O mundo moderno é uma fachada para o ancestral jogo entre o vício e a virtude ("tudo é como sempre foi"); o máximo do que é capaz é de obscurecer o jogo, confundir suas regras.
E aí entra o Livro da Lei, restaurando a noção de Virtude a um sentido mais próximo de sua concepção original: como Nietzsche (um raio anunciando a tempestade!) já colocava, virtude é POTÊNCIA, excelência. Mas em nosso mundo de castrados, a potência é sentida como uma ameaça à comodidade de nosso status quo; o "sucesso" como é socialmente entendido equivale à uma domesticação bem sucedida, submissão à regras do mercado, fábrica, escola ou quartel que nada tem a ver com nossos instintos vitais mais profundos. E aqui damos um passo à frente de Nietzsche, pois precisamos opor radicalmente o poder à potência; poder é aquilo que os políticos fazem, a gestão rotineira do status quo, da neurose coletiva. O tesão em dar ordens é tão patético como o tesão em obedecê-las; a potência só quer criar a si mesma, destruindo tudo que lhe põe obstáculo.
Então, somos herdeiros de 10 mil anos ou mais de poder, o "Velho Aeon", que tornou a humanidade ressentida e desconectada de seu próprio instinto vital. A segunda linha representa aqueles que estão "por baixo", e se rebelam; a quarta representa aqueles que ocupam as posições de poder. Isso pode ser tomado tanto num sentido social objetivo, quanto num sentido subjetivo - ie., as potências de nosso corpo-mente que a civilização reprimiu correspondem à segunda linha, e as potências dominantes cuja expressão é socialmente legitimada correspondem à quarta.
Autores: Leo e Diane Dillon |
O Nove na segunda posição oferece o seguinte texto:
"Não se pode lutar, volta-se pra casa e cede-se. As pessoas de sua cidade, trezentos lares, permanecem livres de culpa."
Wilhelm propõe que o "homem sincero" que está sendo impedido (no julgamento do hexagrama) corresponde a esta segunda linha. Por "sincero", entendamos que a segunda linha, forte e central, está "alinhada com a Verdade". No entanto sua situação é desvantajosa, uma vez que encontra-se no trigrama inferior, e cercada por linhas fracas/sombrias. O trigrama Kun tem como atributo a astúcia, ou seja, os oprimidos estão dispostos a lutar mesmo por meios escusos, roubo, espionagem, sabotagem, e por aí vai. A situação piora ainda mais já que esta linha encontrar-se em conflito com a quinta linha (a única juiza imparcial da situação!) - apesar da revolta da segunda linha ser sincera, sua perspectiva não está em equilíbrio com os modos da natureza. É novamente através de Nietzsche que esclarecemos esta questão: as agitações sociais calcadas no ressentimento buscam por "igualdade" que nada tem a ver com a anarquia coroada da natureza - onde não há igualdade alguma (tampouco poder), apenas potência & pura diferença!
Por isso a única opção desta linha é se tornar Yin, isto é, se esconder. Aqueles que buscam verdadeiramente a ruptura com o passado são uma minoria (300 casas representam um clã pequeno), e os velhos poderes (embora decrépitos) ainda estão instalados nos velhos tronos e tem uma maquinaria infernal à sua disposição; é impossível o conflito aberto. A solução é um recuo tático. (Isto é confirmado pelas instruções de Ra-Hoor-Khuit no terceiro capítulo: "Espreitai! Recuai! Sobre eles! esta é a Lei da Batalha de Conquista: assim será a minha adoração tangendo a minha casa secreta.") Recuando, o pequeno clã evita a calamidade. No texto em chinês a palavra se traduz por "culpa" (ou alternativamente "calamidade causada por humanos") tem sua origem em ideogramas que significam "doença visual", reforçando a noção de que este recuo é necessário para evitar uma visão distorcida pelo ressentimento.
Agora, o Nove na quarta posição:
"Ele não pode lutar, volta e submete-se ao destino. Modifica-se e encontra a paz na perseverança. Boa fortuna."
Essa linha é forte, e se encontra no trigrama superior. Poderia tentar vencer o conflito à força. Porém não ocupa uma posição central (em relação a seu trigrama "Céu"), e o local da 4ª linha é de partida o local adequado à uma linha natureza maleável. É por esta razão que interpretei essa linha como referindo-se a aqueles que se agarram aos antigos ideais, moralidades e privilégios, que estão em posição de vantagem (no poder) porém operando de forma desequilibrada (fora do eixo, ou centro de equilíbrio, de seu tempo). Sua única saída é submeter-se ao destino, ie., enfrentar com abertura a derrocada da civilização, o fracasso da razão, da ciência, da moral, dos ideais, em produzir um futuro digno para a humanidade (ou mesmo o fracasso em garantir um futuro qualquer para a vida na terra!). Através da submissão voluntária da razão aos modos da natureza (que correspondem à lógica profunda de sua própria biologia), e aí perseverando, os verdadeiros benefícios da razão, dos ideais e da ciência poderão enfim ser colhidos.
O Livro da Lei portanto possibilita uma re-conciliação entre o alto e o baixo, erradicando-se o ressentimento e alinhando a alta razão civilizada à sua biologia profunda. Falta então analisar aonde essas mudanças nos levam - definidas pelo I-Ching através do hexagrama CONTEMPLAÇÃO. Isso segue na parte 3, a ser postada amanhã, dia onde se encerram as comemorações dos 111 anos da escrita do Livro da Lei.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir