"Satan", por Kalmakoff |
Agora, Satã, o Diabo é uma figura complexa, da qual vale destrinchar um par de fios os quais são de uso para fazer sentido dessa afirmação. Os Cristãos fazem hoje o sincretismo da Serpente (do Jardim) com o anjo acusador do judaísmo, Satã, que por algum nó surreal veio a absorver o título antes reservado a Cristo: Estrela da Manhã. A imagem, certamente tributária de Milton, é a de uma estrela caída ao subterrâneo por sua Luz autocêntrica, e com ela seguiram também vários anjos, preferindo habitar o Caos da matéria desprovida de inteligência à viver sob a condução da Vontade celeste.
E assim o Diabo ganha associação com elemento Terra, uma vez que é o único elemento capaz de "resistir" à divina inteligência - aliás, o papel da Terra é durar! Vemos na carta O Mundo, do Tarot, que o Touro (que simboliza a Terra) é o único dos 4 Animais Viventes desprovido de auréola. Já chifres, e patas de bode O Diabo adquire apenas durante a idade média, durante a lenta e constante perseguição às outras religiões (ditas "pagãs"), no que absorve em seu campo semântico as deidades ferais masculinas, associadas aos cultos de fertilidade da terra.
Repetição e automatismo - é nessa chave que Jung descreve seu conceito de arquétipo: repetição de um fenômeno por milhares de anos, gravando poderosa impressão na psiquê. O Sol nasce e se põe, noite e dia a alternar-se milênios afora. O bio-psiquismo nascente dos seres vivos tinha de emular a natureza em vias de se adaptar (à ponto de perdurar, e estar aqui), e acaba por adotar a dinâmica deste ciclo em sua própria estrutura (um exemplo é o ciclo cicadiano de nosso corpo - o "relógio biológico").
Quando posteriormente surgem os aparatos simbólicos, ou seja, a cultura, os blocos básicos de "ritmo" gravados no complexo bio-psíquico se atrelam à linguagem, que então passa a codificar de modo complexo os fluxos (montar corpos e gravá-los com a estrutura simbólica da cultura, montando gente).
A criação da "cultura" faz com que as experiências sedimentem de maneira crescentemente frenética, surgindo a "memória cultural", que se desenvolve ao mesmo tempo em dois níves distintos: ao nível superestrutural persiste em mitos, ritos iniciáticos, histórias e nomes; mas mais importante, abaixo em sua infraestrutura: encontramos camadas sucessivas de energia emocional (libidinal) sedimentada no corpo sob a forma de estases musculares, paralização sistemática da motilidade, ou seja, do ciclo vital de um dado músculo. À essas rigidificações no corpo, Wilhelm Reich denomina couraça de caráter.
Tarot de Marselha restaurado por Jodorowsky-Camoin |
A psiquê nascente do amanhecer da consciência - pristina por não ter ainda criado ainda sérias barreiras entre o Eu e a potência criativa/vital - essa consciência pura habita um mundo onde as bordas do sonho e do dia são difusas. Um estado que possibilita uma imensa força criativa (a força que deu parto às culturas!) - como a mente de uma criança, de um mago ou místico em transe, ou de uma pessoa sob efeito de um enteógeno.
Quando posteriormente a força codificadora da cultura se instala nos corpos das pessoas, surge uma oposição entre o mundo objetivo-abstrato do Ego (o mundo do controle) e do outro lado o mundo relegado, de sentimentos e intuições fugidias, de bordas difusas e paradoxos não-duais. É largamente sabido na antropologia que as tradições por todo o globo o homem foi identificado como o sujeito e centro da cultura, e a mulher como sua margens. De similar forma distribuíram-se (forçosamente) as faculdades psíquicas, restando ao feminino restringir-se às funções marginais e portanto fazendo o contato, a membrana, entre o Dentro codificado e o Fora descodificado. A isso se deve a facilidade com a qual grande parte das mulheres tem em acessar e manejar os mundos invisíveis; por exemplo, para os Egípcios, a deusa Isis era tida como criadora da Magia.
Esse processo finca suas bases ao início do patriarcado, mas é quando surge o Estado - a Civilização, que é fundamentalmente Diferença de Classes - que o controle atinge um plano totalmente outro: os corpos, antes "arados" (à sangue) pela cultura, vem à receber agora a dura carga da domesticação e o flagelo da servilidade; são simbolicamente "castrados" para adequar-se à posição de subjugados aos desígnios das classes nobres (à princípio, classes guerreiras e conquistadores).
E de lá pra cá são milhares de anos, sem dúvida repletos de fugas e de resistências, e em dose ainda maior, brutal repressão. Dos estupros grupais corretivos impostos a mulheres que desviam dos padrões - hábito inclusive em algumas tribos indígenas brasileiras - aos séculos de escravidão e de servidão feudal e imperial - aos massacres coloniais - à perseguição de bruxas (em quase todo canto), aos povos nômades ou diaspóricos - cada ato de opressão sedimentando o poder mais ainda no corpo, gravando memória de dor ossificada. Duradoura, osso pontudo a sangrar os séculos.
Aí no vínculo - na algema! - desse passado que recusa-se a desaparecer, desse passado que se impõe sobre o presente, mora O Diabo. Senhor de todos os liames, Grande Aprisionador. Ele é feito de recusa do Si Mesmo & responde por todo o Caos que isso gera no mundo. A terrível sombra projetada pelo gigante robô do controle. Sua força é a energia sexual e agressiva - a nossa energia, que nos foi e é negada - e a neurose é a cumplicidade com esse status quo. Por isso, o Diabo manda no mundo.
É a isso que a primatóloga feminista Donna Haraway se refere com o termo Chthuluceno: reaver as forças trancadas debaixo da terra, que seja para fazer frente e sentido ao colapso causado pelo titânico aparato de controle desequilibrado que se impõe contra a vida na Terra. Não se trata de "Satanismo" (entronizar a sombra por acima do Ego), e sim de revelar a complementaridade e igual valor de todos os pares de oposição, reavendo-nos da energia condensada sob a forma do feminino reprimido. Uma vez removida da panela de pressão, a sombra revela-se, finalmente, uma gradual (mas sempre extática) fusão e com o oposto íntimo há tanto proibido, a que Jung chamava de Animus/Anima. Como o próprio Jung alerta, ambos os procedimentos (com a sombra e com o Animus/Anima) são dotados de seus próprios perigos, mas contém em si a única possibilidade de reavermos A Pérola de Grande Preço, cujo valor foi declarado pelos sábios como incomparável a qualquer outra coisa no universo.
Wife of Satan por Kalmakoff |
(1) Escolho deliberadamente a palavra "automatismo", pois, como insinuei oblíquamente no post anterior, quero apontar o fato de que programa Surrealista era diretamente Gnóstico. Não com muito espanto podemos constatar André Breton traçando no Segundo Manifesto do Surrealismo um paralelo direto entre os surrealistas e os magos da era passada.
(2) Similar visão é expressa por Aleister Crowley, como pode ser constatado no (primoroso) Liber Aleph.
Adorei o texto!
ResponderExcluirImpecável o conteúdo deste artigo. Parabéns
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