segunda-feira, 14 de maio de 2018

O GRANDE APRISIONADOR (Parte III - A Dúvida do Filósofo)

(aqui tem a Parte 1 e a Parte 2)


Alexandre Cabanel, Fallen Angel (1968)


TRAGÉDIA

O PECADO DE LÚCIFER FOI SER FIEL À PRÓPRIA NATUREZA. Que mais poderia colocar como oposição à Deus senão a própria natureza, divinamente criada? Ou seja Deus criou Lúcifer para ser rebelde. Deus criou o opositor.

E então o puniu? Teria Deus repreendido o próprio ato? Não pode ter sido punição. A história da punição me parece então uma suprema blasfêmia, cogitar que Deus pode afirmar o mal, que o mal é divino. E se é divina a própria perfeição, como poderia o mal ser perfeito? Se fosse perfeito, não seria mal, e sim parte da positividade do universo. Só vislumbro uma resposta: O Deus da narrativa moral é impossível. E o mal não existe senão relativamente, como efeito de superfície.


DAIMONS E DEMÔNIOS

No último texto dessa série eu identifiquei Satan = Saturno = Hades = Demiurgo.

O Demiurgo não é a imagem pessoal que vemos do diabo. Ele mantém todo o mecanismo dos céus girando. Ele é a ordem por trás do picadeiro. Ele é o planeta Saturno, dando forma e definição à criação.

Sob seu controle, estão todos os daimons - espíritos. Haveriam aqueles encarregador de "ajustar" forçosamente a criação a seu plano, entendidos no neo-platonismo como espíritos punitivos, forças de restrição. E haveria também um daimon pessoal. Não é um anjo das esferas: um dos anjos que seguem os deuses em sua órbita. É de uma ordem própria de espíritos. Segundo reza o mito platônico, o nosso daimon nos guia no pós-morte. Ele nos orienta através do processo de escolha de um destino, no momento da encarnação. Uma vez encarnados, ele acompanha cada um de nossos passos. Assegura que o destino selecionado vai ser cumprido da forma mais perfeita e gloriosa possível. Em alguns casos, portanto, ele assegura o caminho da virtude. Em outros, tenta impedir o pior. Por fazer o trabalho prático de inserir e manter a alma dentro da encarnação, ele é o nosso pequeno aprisionador, sob comando do Grande Aprisionador. Por significar a vinculação da alma com a matéria, torna-se significador de todo o terror que isso representa - o terror de mil vidas repetidas em meio à lama. Seria esse terror a fonte de onde a imaginação saca a imagem de um diabo pessoal e moral, o agente de punição ele mesmo punido?

Toda a malevolência, toda a corrupção, toda a sujeira e tirania da terra - da qual nós, seres encarnados, partilhamos - é "infligida" em nossa alma pelos daimons pessoais, por sua ação de nos vincular ao mundo da matéria. A maldade é nossa, mas por ignorância do pensamento, por não compreender que os daimons são apenas intermediários - atribuiríamos à eles o mal. Me parece ser essa a base inconsciente sobre a qual se sustentou, na consciência pública, a equação daimon = demônio = mal. Mas o "mal", o que quer que ele seja, é então da terra. Ou seja, nosso. Somos nós que somos ruins, que nos deixamos mirar no caos e perdemos o caminho da virtude. (e podemos passar por aqui sem moralismo: entendendo virtude como o mesmo que potência, o caos, dissipação da potência).

Há, também, pros neo-platônicos, espíritos maus. Mas não são maus por natureza, assim como nossas almas; se tornam maus ao se misturar com a terra. Chegamos então no X da questão: o que é o mal, isto é, o que há na terra que possibilita o mal? Se Deus é a inteligência, e a perfeição, então o mal é tudo que é refratário à perfeição e portanto à inteligência. Essa refração é necessária para que haja tempo, ou seja, potencial de aperfeiçoamento. O tempo pode ser entendido então como cognato da terra: onde há tempo, há imperfeição, onde há imperfeição, há mal.


Kurt Kranz - "The Drowners", 1931


DURAÇÃO E DIVISÃO

Bergson viria ainda a dividir o tempo em duração e extensão, sendo que a duração poderia ter seu equivalente no Aion dos neoplatônicos (os blocos virtuais de tempo, dotado apenas de diferença de natureza - me aparecem, intuitivamente, como Ovos, Ovos de Mundo) e a extensão como local, por excelência, das diferenças de grau (o plano onde existe o "mesmo", a repetição). À extensão podemos chamar de matéria: acompanhamos, assim o I-Ching, que atribui ao elemento feminino transcendente o trigrama Mundo, que é composto apenas de linhas passivas, como uma passagem, e teria por atributo, precisamente, a extensão. O tempo seria portanto feito de duração e de matéria. E é apenas na segunda que existe o "mal", que é, quando as diferenças de grau (que caracterizam a matéria) se sobrepõem às diferenças de natureza (que compõem a duração).

Isso se conecta com o insight que tive durante uma sessão de ayahuasca, de que "o tempo é iniciação". A mensagem era de que a matéria estava sendo iniciada no Espírito, na Lei do Espírito. E que cada ser do universo ocupava uma duração diferente desse processo de iniciação - matéria bruta, pedras, plantas, animais, pessoas - porém só havia um único sentido. Os neoplatônicos propõem ainda um sistema de participações, que forma efetivamente uma grande cadeia. Através da vida, dos organismos, a matéria é capaz de participar de uma organização superior, que não rompe suas restrições. Através da vida inteligente, o organismo é capaz de participar na "alma do mundo", e através dela, de esferas ainda mais elevadas.

A penetração do espírito na matéria me surgiu, em meio à esse insight, como uma explicação do que significa a fecundação da virgem. O espírito organiza a matéria sem violar suas leis. Um corpo vivo é muito mais que uma pedra, mas de um ponto de vista material, ambos estão igualmente submetidos à causalidade. O que é, porém, o "à mais" da vida? O que distingue a matéria penetrada pelo espírito da matéria não-espiritualizada?

Bergson coloca que na natureza física, não-animada, a potência se reduz ao que é (uma série de atributos estendidos), enquanto que no ser vivo a potência de várias modos transborda, e o todo do passado se reinsere no presente. Em extensão somos apenas corpos no espaço, mas participamos de uma vida intensa, primeiramente através de nossa comunidade com toda a história da vida, que nos aparece na forma de um impulso vital. O que é interessante é que pra Bergson não há um espírito que não uma espécie de "alma do mundo" imanente, a força da vida.

Fico, por enquanto, dividido entre duas narrativas, uma onde há um Espírito e uma Matéria e eles se encontram, dominam ou rejeitam um ao outro, dando fruto à um mundo de bem e mal, e outra narrativa onde só há uma única substância e a infinidade imanente, e o foco está no corpo, e Deus se coloca como um problema de composição corporal. (1)





SOLVE

Fui dirigido, pelos meus sonhos, à aprofundar em Baruch de Spinoza. A obra prima de Spinoza, a Ética, é um diagrama traçado contra as idéias tortas que temos sobre Deus. O que acontece é que Deus nos aparece ao mesmo tempo uma realidade da natureza e uma fantasia neurótica ou edípica. Conheço várias abordagens à essa questão, que podem ou não se articular. Poderíamos dizer que a alma tem a necessidade de "diferenciar" Deus (em meio ao caos) para que possa conceber, para si mesma, a plenitude. Deus seria portanto um símbolo para a plenitude. Wilhelm Reich chamaria essa plenitude de potência orgástica, e portanto, Deus seria uma espécie de "fantasia" que criamos acerca da unidade da energia do corpo, que podemos experienciar através do profundo relaxamento de um orgasmo pleno.

Haveria ainda, portanto, o Deus pessoal, tudo que projetamos fantasiosamente sobre os Deuses. Mas de um ponto de vista místico essas fantasias não devem ser descartadas mas usadas como veículos - basta não tomá-las como evidentes em si mesmas, e sim apenas como um meio à se percorrer, um processo. Uma floresta de fantasmas projetivos, que frente à luz do Sol inevitavelmente se dissipará? O que é Deus, portanto, se erguemos a cabeça pra fora da umidade da terra, e situamos nossa perspectiva, verdadeiramente, do espaço?

Lendo Spinoza, eu sinto como se precisasse subir mais alto, persistir e enxergar em um lugar muito rarefeito. Então lembro que Spinoza foi amaldiçoado de todas as formas pela comunidade judaica que o expulsou, e no entanto, viveu de forma estóica e ascética os anos que se seguiram, completamente digno e íntegro à ponto de ganhar o título de "o filósofo gentil". Benedito foi chamado e bento foi Spinoza, e se há alguma falha lógica na pureza geométrica de seu círculo, tão gloriosamente traçado nos céus, cabe engajá-la de igual por igual, em seus próprios termos - para só assim poder, com conhecimento de causa, discernir: quem tem o Ovo do Mundo?



Baruch de Spinoza - autor desconhecido

O PROCESSO

Conforme vim aprofundando em práticas meditativas e tântricas, comecei a reencontrar diversas idéias obsessivas relacionados a medos cristãos - de estar adorando o diabo, seguindo um caminho errado no ocultismo, perdendo minha alma por rejeitar a religião popular, etc.
Eu já tinha passado por algo parecido antes: quando por ocasião de alguns episódios de paralisia do sono um lado meu obsessivamente supersticioso veio à tona, por volta dos quinze anos; acreditei então estar sendo acossado pelo diabo.

Meus sonhos vem apontando nos últimos anos no sentido de engajar de alguma forma o cristianismo.
Talvez a questão seja conquistar adesão plena à uma religião. E talvez essa religião tenha de ser o catolicismo. A psicologia me forneceu uma chave pra entender isso: de um ponto de vista inconsciente a necessidade é, precisamente, de adotar a religião de meus pais, pois só assim eu me sentiria seguro para me entregar, ie., seria capaz de acessar o grau de confiança que uma criança tem em seu pai e mãe.
Minha consciência, por outro lado, pede discriminação. Questiono, por ex., a adesão ao conteúdo da fé de meus pais, me colocando que, se eu tivesse nascido em outro país, iria cogitar a adoção de outra fé.
Ao mesmo tempo, percebo que a necessidade de se refugiar no pai e na mãe é ela mesma uma fuga da tarefa, bastante mais complicada, de viver a própria vida. Ou seja, a vida inconsciente permanece retida no pai e na mãe,  mas o impulso rumo à consciência necessita a ruptura para que haja espaço para criação.

Além disso, e compreensivelmente - o conteúdo do credo católico, os crimes da igreja, a mórbida fixação no sofrimento de cristo, tudo isso me repele enormemente.


Acaba que a série que essa série de textos sobre O Grande Aprisionador são, na verdade, uma exploração da relação entre o pensamento e a intuição mítica, no sentido de organizar, para mim, esse conflito da consciência com o inconsciente.

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