O que é a Rota 32?


SAGUÃO DE ENTRADA


No diagrama qabalístico da Árvore da Vida,
a Rota 32 é o caminho que liga 
Malkuth a Yesod,

ou seja, a matéria ao espírito. (Imagem: B.O.T.A.)

A sabedoria dos Antigos diz que o mundo de objetos materiais que conhecemos durante o dia emerge verdadeiramente do Espírito, não só num dia há muito passado - mas também momento a momento: todo o Tempo e Espaço se sustentam como que nos "ombros" de puro Mistério.

(Mas que Mistério? - uma vez me retorquiram.

Como que Mistério? Eu fiquei sem palavras para responder. Depois remoendo essa história, começam a me ocorrer perguntas:
Afinal porque esta realidade, e não qualquer outra? Porque alguma coisa e não simplesmente nada?

É a tarefa da Filosofia refinar estas indagações. E por mais que esta seja uma empreitada útil e até mesmo necessária, resta o fato de que as perguntas dizem muito mais de mim mesmo do que do próprio Mistério.

Só é possível conhecer o Mistério pela Experiência Direta. Dica de um buscador experiente: Se sua vida não tem mistério, disque M-A-G-I-A e resolva essa triste condição.

Dito isto; de volta à Árvore)

Um universo não é obra que se faça de um só lance, e sim é erguido em camadas (os antigos chamam isso de emanações). A Árvore da Vida (representada abaixo) é um diagrama que busca descrever a "planta" usada por Deus no processo de criação.

Primeiro ao alto encontra-se o Supremo plano da Divindade, impossível de ser conhecido, onde Deus é despido de quaisquer atributos. Fala-se então das raízes "negativamente existentes" da Árvore da Vida, que só podem ser definidas negativamente (pelo que não são). Foram chamadas Ain, Ain Soph, e Ain Soph Aur, recaindo como véus sobre o indescritível.

A primeira manifestação surge sob a forma de um único ponto: é Kether, que significa a Corôa. A partir daqui, a força divina criadora só poderá mover-se à custo de assumir (multiplicar) nomes e perspectivas parciais (ou seja, multiplicando este ponto inicial para formar linhas e formas complexas, cada qual permitindo um ângulo diferente através do qual o Divino encara a criação).

Assim ganham existência as 10 esferas e os 22 caminhos que ligam umas às outras. Cada uma dessas esferas é descrita como uma Profundidade na Qabalah judaica. Na tradição elas são divididas em 5 pares, compondo uma geometria de 5 Dimensões: norte x sul, leste x oeste, cima-baixo, bem x mal, passado-futuro. As profundidades são também chamadas Sephiroth ("contagens") - pois a cada Sephira foi associado um número, o processo de criação indo de 1 ao 10.


Árvore da Vida - Você está aqui. (arte de autoria desconhecida)

Assim temos ao topo as Sephiroth 1, 2 e 3, dispostas como um triângulo, o 1 como a ponta superior, 2 e 3 a formar-lhe uma base. A passagem do 1 para o 2 se dá num gesto primordial onde o Ser Uno coloca-se ao lado de si mesmo para se conhecer. Se há o conhecer há então o conhecedor, o conhecido e a diferença entre eles - e daí emerge o 3, compondo a Tríade Supernal.

Tudo que se segue origina-se da ação conjunta desta Tríade, que desdobra-se nos níveis inferiores repetindo o triângulo (se bem que a cada vez de forma mais modificada).  Assim se formam as Sephirots mais abaixo na imagem, relativas aos números subsequentes (de 4 a 10) e que  expressam operações lógicas cada vez mais complexas (por exemplo - a idéia de 9 pressupõe a idéia de 3, e por outro lado, o 9 já estava contido, em potência, no 3).

Já os caminhos que ligam as Sephiroth umas às outras correspondem às 22 duas letras do alfabeto hebraico, que na Qabalah são os "blocos básicos" da criação, o código por trás da "Matrix". O evangelho de João assim inicia: "No princípio estava o Verbo" (Logos). Essas letras foram associadas desde a antiguidade (Sepher Yetzerah) aos signos do zodíaco, planetas e elementos - os mesmos com os quais muitos de nós são familiares através da Astrologia, que finca suas origens na sabedoria greco-egípcia. Esta vinculalção entre o sistema greco-egípcio e o uso místico do alfabeto hebraico vem sendo utilizada por místicos e magistas há pelo menos dois mil anos, mais recentemente tendo sido anexados também ao Tarot na Qabalah Hermética.

Vai ter Sepher Yetzirah versão hip-hop, SIM!

A imagem da Árvore da Vida usada acima (e também a outra mais abaixo) utiliza um esquema de cores criado pela Hermetic Order of the Golden Dawn, ou Ordem Hermética do Amanhecer Dourado (1), grupo ocultista fundado em 1888 que tornou-se bastante famoso por ter contado entre seus membros os poetas W. Yeats e Aleister Crowley. Foram os segredos da Golden Dawn, trazidos a público primeiramente por Crowley (e depois por seu discípulo Israel Regardie) que moldaram irreversivelmente o ocultismo do século XX. Uma peculiaridade do sistema da Golden Dawn é que ele é integrado de modo funcionar como um tudo sonoro, cromático e simbólico - porém às custas de atropelar o material que lhe serviu de fonte.

Apesar da popularidade da versão  da Árvore da Vida adotada pela Golden Dawn - a chamada "Árvore Kircher" - é importante notar que ela não é a única versão da Árvore da Vida, tampouco necessariamente a melhor ou mais ancorada pela tradição, mas só a que teve a sorte de se popularizar neste século. Em contraste à versão Kircher tenho preferido a Árvore Saadia, que corrige a harmonia das proporções do diagrama em relação às divisões tradicionais das letras do alfabeto hebraico.

Enquanto estamos aqui "embaixo" é preciso ter em mente a historicidade de cada um desses construtos. Atados como estamos às incertezas da existência sublunar - não haverá jamais consenso na Terra em relação à mais simples coisa. A Terra é um Labirinto e seu modo de ser é Multidão (os chineses dizem dos Dez Mil Seres), e até agora temos nos provado uma multidão bastante incômoda, cada qual apegado aos cercadinhos provincianos de seus condicionamentos de infância/culturais.


Swimming in the Serotonin Sea por Robert Steven Connett.

Os tempos modernos nos trouxeram o desafio de aprender a lidar com as diferenças em turbilhão, ou perecer  frente à monocultura. A solução da "direita" política é a de rejeitar o Vórtex em prol de conservar uma ordem caduca, enquanto a "esquerda" em grande parte se mantém restrita a às teorias materialistas e esperanças dos movimentos operários do século XIX, que por sua vez negam o Inconsciente (isto é, a permanência do passado sobre o presente), crendo que uma ruptura brusca o suficiente pode fazer "tabula rasa" da sociedade. Neste afã terminam por descartar o bebê da Maravilha junto a água do banho das convenções burguesas e aristocráticas (sem nem tomar conta de que o Bebê mesmo existia).

Enquanto esquerda e direita discutem (ou se matam), a oligarquia disfarçada do "capitalismo" e as forças dispersivas originadas da peste emocional devastam a biologia planetária até um ponto irremediável. Você está aqui. Há muito tempo os sábios anunciaram este fado, se bem que o (mal) entendessem eles mesmos segundo as limitações de seus contextos. A porra do mundo está acabando e não podemos perder tempo com mesquinharia. Então vale mais ouvir a voz os sábios de todas as eras, perdoando-lhes as divergências nos detalhes mas buscando resgatar deles o essencial.

E (graças aos Deuses!) o essencial é verdadeiramente SIMPLES - aliás tão simples que acaba sendo totalmente impossível de explicar em palavras. De nada adiantam 10 mil frases ou gestos dirigidos esperançosamente ao Céu, ou pelo contrário, a imitação do Divino Silêncio através da "inação" preguiçosa de um renunciante. Entendimento, que é bom, e Sabedoria, me desculpe mas só lá no alto, por via do TRANSE (Samadhi) - e pelo outro lado, só vale de alguma coisa se encontrar sua expressão em atos aqui embaixo na Terra.

Só que entre lá no alto e aqui embaixo tem muito, muito, muito mais que uma linha reta (infelizmente).

Por isso o primeiríssimo passo é arranjar um mapa da Montanha Sagrada. E a Árvore Kircher não é o ideal, mas vai nos servir pra fins desse texto aqui:

Árvore Kircher com esquema de cores da Golden Dawn (1)

A esfera mais abaixo no diagrama é Malkuth, ou o Reino; é onde tomamos consciência do mundo enquanto objeto. É representada como uma bola com um X pois o X é associado ao número 10 (são 10 os nexos ou Sephiroth da Árvore da Vida).  As quatro cores ligam-se aos quatro elementos, que correspondem aos quatro estados da matéria - sólido (terra), líquido (água), gasoso (ar) e energético (fogo).

Portanto esse "plano de manifestação" que é Malkuth contempla tudo que é fisicamente detectável, incluindo os fenômenos mais sutis de natureza elétrica e/ou sub-atômica, e nossos próprios corpos vivos (percorridos por correntes bio-elétricas). As modernas ciências "duras" (física, biologia, química, etc) são simplesmente o ramo da filosofia (=Magia) dedicado à compreensão do plano material (Malkuth), e quase ou nada tem a dizer sobre as camadas imateriais que estão nele imbricadas.

Pois logo além da Terra está Yesod, a Profundidade do Oeste, onde finda a Matéria e começa o Sutil, ali o onde o Sol da consciência diurna se põe numa Noite Espiritual. E o caminho que liga um ao outro é a Rota 32.



A Rota 32

é o trigésimo segundo caminho a emanar da Árvore da Vida (o que quer dizer que é o último: 10+22) - e também o primeiro caminho a pegar de subida.

Tanto na Árvore Kircher quanto na Saadia, a Rota 32 é ligada ao Arcano do Tarot "O Mundo". A Árvore Saadia atribui O Mundo ao planeta Lua, regendo sobre a Graça e a Feiura; sobre a lunação (o mês lunar), um espaço de ganho e perda cíclica de Luz; os ritmos profundos do "inconsciente",  fluxos e refluxos de humores sobre a Terra. E para os antigos toda a realidade terrestre era dita 'Sublunar', encontrando-se sob domínio da Lua (o astro mais próximo).

Versão com cores originais restauradas
por Jodorowsky-Camoin

Já no Tarot de Thoth (assim como no resto da tradição da Golden Dawn) este carta é associada à Saturno, expressando portanto a totalidade do espaço-tempo; espírito e matéria entramados à dançar, emergindo de uma Vulva cósmica. São flanqueados pelos Quatro Querubins dos 4 Elementos - O Touro é a Terra, a Águia é Água, O Leão é Fogo, e o Humano, Ar. A fusão desses quatro seres é também encontrada no antiquíssimo glifo da Esfinge.

"O Mundo" se torna "O Universo" na redenção
psicodélica do Tarot empreendida por Crowley

No hebraico as letras são usadas também como número;  desta forma 32 é escrito Lamed-Beth, LB, que significa "coração". Portanto a Rota 32 é (também) o caminho do Coração, isto é, da integração do Espírito como a Matéria, sendo o coração o orgão ligado à sephira Tipheret, associada ao Sol e ao número 6 (que é 3 x 2) e que é a junção do Macrocosmo (o plano divino) com o Microcosmo (a perspectiva parcial das criaturas). O Sol interior a brilhar em cada um de nós, como versa o Livro da Lei: Todo homem e toda mulher é uma estrela.

Neste sentido, a Árvore da Vida é também um mapa de percurso mágico - uma rota de fuga! - para sair da gaiola do karma, aqui dessa vidinha de servidão aos hábitos cegos do passado, da repetição dos complexos neuróticos inconscientes - "fuga" e superação disso tudo rumo a um plano onde há verdadeira clareza, vida e liberdade de ação. E como acomete aos sonhos, a lucidez trás também certa plasticidade à vida,  que é então dirigida segundo a Vontade e em harmonia com o tempo.

A esse poder ativo, transformador, os sábios do passado deram o nome de Virtude, que é hoje muitíssimo mal entendida como "seguir um ideal moral de comportamento". Os gregos a chamavam Arete, e para eles era como um tipo de excelência, potência ou graça natural.  O cultivo da Virtude é o caminho do verdadeiro poder mágico.

É esta a missão do Rota 32: Abrir os portões do Inconsciente. Tratar com Anjos, Deuses e Espíritos, dar voz às Estrelas, colocar o Sonho pra comunicar em praça pública. A Magia é de todos, embora ela demande (entre outras coisas) a ousadia de clamá-la para si (e portanto acaba sendo pra poucos). Uma vez ela foi reconhecida como a Arte dos Reis e buscada pelos melhores de cada geração. E hoje em dia - esquecida, jogada fora junto a embalagens de sucrilhos, ou temida precisamente como (e pois) se teme a própria sombra, o próprio mundo interior, o próprio Umbral dos Mistérios que é Yesod.

Traçar uma uma rota de fuga ao pesadelo militar-capitalista-patriarcal-estatal por sinuosos labirintos, por uma estrada sombria e esquecida, caminho de ambiguidades e estranhos retornos. A Rota 32 é o Parto de um Mundo, sob a regência da Semi-Deusa Promethea, idealizada pelo quadrinista Alan Moore - e seu lema é "Se ela não existisse, nos teríamos de inventá-la". Promethea é autoproclamada, Forma e Função tornados unos, uma via de acesso à esse plano de fusão que é a Fundação de Tudo. É em louvor a Ela encerro esse post:


Extraído de Promethea (ed. 13), por Alan Moore e Williams III
(1) Para ser preciso, o  esquema de cores pertence à ordem chamada R. R. & A. C. (uma sigla cujo significado seria supostamente secreto), da qual a Ordem Hermética do Amanhecer Dourado era apenas o portal de entrada. Os rituais da introdutória Golden Dawn em geral não utilizam atribuições cromáticas, trabalhando basicamente com branco e preto; era apenas na entrada na R. R. & A. C. que as cores eram introduzidas.

Um comentário:

  1. Hi Iago,

    Maybe try to use the ToL as a means towards unification through meditation on the depths as opposed to a snakes and ladders escape route. I don't think there is any problem with approaching understanding of each element of the system by meditating on/contemplating each in turn but some of the snakes and ladders stuff from the G.D. detracts from the unifying properties.

    I'll make my own post on the problems with seeing Malkuth as the Material world, but if you want take a look at:

    http://hermeticlessons.blogspot.cz/2015/07/the-tree-of-life-shadows-of-past.html

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