sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Entre o sujeito e o objeto



A condição humana, por René Magritte

Nesse texto quero defender dois pontos. O primeiro é de que não podemos prescindir de erigir uma metafísica, conscientemente ou não, para poder elaborar qualquer pensamento. A segunda é de que só temos a ganhar caso a gente reconheça essa situação, e assuma o controle dela. O que está em jogo são os limites de nossa percepção do universo; algo que interessa aqueles que buscam as terras virgens que se estendem pra fora do consenso - por qualquer meio que seja: nas ciências, nas artes, na filosofia, na política, etc.
É muito comum que pessoas refiram a si mesmas como céticas, ou como científicas, e com isso pretendam o acesso exclusivo à verdade. Com grande frequência, esse ceticismo ou essa cientificidade não é caracterizado pela paciência observacional pra se chegar as conclusões: é apenas um atalho para o pensamento poder quietar-se e erigir sua casinha em algum lugar. O que quero dizer é que essas pessoas não são céticas no sentido de se colocarem a parte de suas próprias expectativas, e das dos outros, e observarem o que acontece no mundo - para aí elaborar um plano de interpretação e consequentemente de ação. Os pseudo-céticos ou pseudo-científicos defendem, de forma análoga às religiões, uma série específica de modelos ou visões de mundo como se fossem crenças - resultando em comportamentos dualista do tipo nós x eles similares a qualquer torcida de futebol.


Quero dizer que o objetivismo e o positivismo, esposados pelas ciências "duras" e por todas as que gostariam de se eleger a tal título, escondem atrás de sua paciência observacional uma série de conclusões apressadas. E, que em muitos casos, essas conclusões que foram deixadas na inconsciência exercem um poder perigoso sobre a capacidade pensante do sujeito. A ruptura de Freud com o Jung é emblemática: Às vistas de Jung, Freud tinha uma relação tal com algumas de suas próprias idéias - como a de que a sexualidade é o fundamento da vida inconsciente - análoga à de um religioso, a ponto de se referir a essa idéia, em meio a uma discussão inflamada, como um "dogma". Sim, o próprio Freud soltou essa, do naipe: "Faça o que quiser, Jung, mas por favor, jamais abandone esse dogma!"¹. Segundo Jung essas idéias de Freud eram investidas de uma "numinosidade", uma carga emocional capaz de mesmerizar o ego do sujeito - da mesma forma que a idéia de Deus para os crentes. Dentro da psiquê elas exercem funções similares, para indivíduos de diferentes formações.

O problemático é que as pessoas que evocam a "objetividade" na verdade estão fazendo um tipo estranho de jogo duplo com as coisas, muitas vezes sem o perceber. Para um grande número de seres é empregada a rubrica de "objetos", ou seja, desprovidos de consciência, psiquismo ou intencionalidade; para outra série de seres empregamos o conceito de "sujeitos", entendo-os como dotados de uma alma, insondável e livre, capaz de tomar decisões e refletir e sei lá o que mais. Porém, existe todo um território que está constantemente sendo abordado (pelas pessoas, pelas instituições) alternadamente através das duas vias - contradições ou linhas de fissura. Para uma Justiça, por exemplo, uma pessoa é ou não é responsável por um ato, mas para uma neurologia somos todos apenas máquinas orgânicas similares a computadores. Somos indivíduos indivisíveis, sacrossantamente unitários, essencialmente humanos - mas até quando? Se eu posso substituir seu corpo todo por máquinas, fazer upload de seu cérebro pro computador, sou mesmo um só (um programa de computador é infinitamente copiável - é um ser humano? Senão, porque?) E se o indivíduo não sou eu, e sim uma colônia de células, eu sou uma coleção de indivíduos? (o organismo é a formiga ou o formigueiro?) E as organelas, mitocôndrias and the like? Onde acaba a matéria e onde começa o sujeito? E esse tal de sujeito, por que princípio físico exerce a sua liberdade, como diabos ele é capaz de mover as partículas do cérebro para que essa maquininha se comporte segundo a liberdade que deve conter?

A própria física, que talvez seja uma das culpadas antes de tudo por misturar, nas ciências nascentes, o "real" com um modelo do real - chegou a um ponto onde é difícil traçar a linha do sujeito e do objeto. Onde, talvez, o próprio observador se vê incluído no sistema de seu experimento, impedindo que se separe claramente o observador do observado. Ou interpretações pra física quântica como a das Muitas Mentes, que explica tão bem (e tão insuficientemente) os inesperados quânticos quanto a interpretação dos Muitos Mundos.

O retrato, por René Magritte

A gente se vira pras ciências pedindo pra que se defina o são (aquele que ainda é um sujeito) do doente mental; que defina o certo do errado na cultura, no caso da antropologia; que defina as fronteiras do feto com o humano, no caso da biologia; mas essas fronteiras são invenções doutrinárias. Sim, elas exercem seu papel no mundo, e sinceramente, um Estado pra existir vai traçar essas linhas, é o que sempre fez anyway - traçar fronteiras de todo tipo. E a decisão em última mão é uma decisão política. Acima de tudo, as ciências tem pulverizado tanto sujeito e o objeto (aqui sigo Foucault, com a morte do homem e o poder disciplinar). Porque pra biologia, existem transformações funcionais no corpo do feto, mas não existe o Homem. Com H maiúsculo. Existe aquele corpo, aquele objeto. Sujeito? Se você pensa objetivamente, só vai conseguir nesses casos descrições funcionais (e ótimo, elas são úteis). Consciência? Esqueça, você não pode observar isso, não é um objeto válido de saber. Mas, apesar disso, por trás de todo objeto válido de saber tem um observador, ou seja, um sujeito, uma consciência, que observa.

É como se a construção dos edifícios da objetividade implicasse que certas coisas ficassem como fundamento, enterradas. Agora, qualquer que seja a perspectiva que você vá lançar você vai precisar de estabelecer uma malha, os pontos cegos, a viseira. Nenhum mapa pode ser tão completo quanto o território - senão, ele sequer serviria de mapa pois seria de tamanho e complexidade idêntica ao território. O papel da ciência é lançar mapas que reduzam a realidade até produzir abstrações manejáveis como "causas" e "efeitos". A questão é que toda vez que você escolhe sua malha de pensamento pra jogar sobre o mundo, você cria, também, uma nova forma de entender - uma nova forma de enxergar, que pode ou não ser pertinente a seus objetivos (toda perspectiva simultaneamente limita e cria). Se você quer construir foguetes, go for it, a física e a engenharia como são hoje até então tem se dado bem sem produzir esse tipo de coisa (mas talvez pra progredir seja necessário explorar os terrenos estranhos dos fundamentos). Se você quer fazer uma melhor poesia (e isso faz diferença, é real - pra quem lê, pra quem se deixa afetar), você vai precisar de outros mapas. Se você quer entender a própria consciência você vai precisar de uma inventar outra metafísica que não parta da invisibilização da mesma em um sistema parcial (objetivo). E os resultados serão diferentes. Não serão iguais às ciências objetivas, claro: o ponto é que não precisamos SÓ das ciências objetivas. Temos inúmeros saberes possíveis.

Outro dos fundametos (e ocultações) do edifício da ciência objetiva é a idéia da replicabilidade. Um experimento precisa ser repetível experimentalmente em outros laboratórios, se quiser provas qualquer coisa: logo, toda a classe de fenômenos não-repetíveis, caso exista (você vai precisar definir existir) está automaticamente declarada irreal, mesmo que aconteça. Porém, ao meu ver, a empiria tem a palavra - e qualquer cientista que eu preze concordaria. Aí você fala, "como assim coisas não repetíveis? do que você está falando?". Jung, por exemplo, aborda um desses fenômenos: a sincronicidade. Seriam fenômenos como coincidências significativas, que operam na ordem do sentido e não da objetividade; um caso famoso, onde um paciente falava de um sonho ou similar de um besouro e de repente um estranho escaravelho entrou voando na sala. Objetivamente, até onde se sabe, não há relação de causalidade entre as duas coisas, portanto podemos declarar um fenômeno acausal; não há violação de lei física nenhuma no voo do escaravelho ou na fala do paciente, portanto a objetividade está preservada em seu cantinho. Para Jung, no fim das contas, a totalidade do inconsciente - o inconsciente coletivo - opera fora do tempo e do espaço, em uma repetição mítica ou coisa assim, e as tais sincronicidades só são estranhas pra consciência diurna - são as características do tempo do sonho.

Quando você trampa mexendo com o inconsciente direto, a la Jung, ou começa a fazer magicka no caso dos ocultistas & cia, esse tipo de fenômeno estranho fica mais frequente, mas ele é irrepetível em condições experimentais, pois é da ordem da coincidência significativa - cada evento é uma situação singular e referente unicamente a seu contexto imediato físico e simbólico. É o que também é chamado de acontecimento ou evento.

Fita de Moebius, por M. C. Escher


Outro exemplo é a divinação do tarot. Eu tiro as cartas pras pessoas. Ao mesmo tempo, me omito de provar qualquer coisa pra qualquer um. Eu desenvolvi minha forma de lidar com a coisa, e os interessados que lidem como quiserem. A única coisa que eu não gosto é quando pedem pra eu tirar o tarot com a intenção de provar se é objetivamente falso ou verdadeiro. Objetivamente, é só uma tirada de cartas aleatórias. Mas no modelo que atualmente esposo (e brinco com), tirar as cartas é um ato mágicko, e como acontece nessa sorte de atos, a própria intenção do experimentador ao tirar as cartas condiciona o resultado. Se sua intenção é testar, você vai conseguir o que desejou: um teste objetivo - seu ato mágicko se cumpriu segundo a sua vontade. Mas te evadiu completamente outros potenciais daquela experiência, outros atos de vontade que não remetem ao teste e aos objetos, mas ao intemporal. É claro que as cartas, se abertas mais de uma vez, muitas vezes darão resultados diferentes: o contexto da primeira tirada de cartas é irrepetível, é absolutamente único e singular no universo; ele fornece um substrato material (sem violação da causalidade - não há inobjetividade em se remover uma lâmina de papel de uma caixa) pra produzir um efeito que pode ser abordado na ordem do sentido. Agora, isso é um modelo também: uma metafísica diferente, que reconhece fenômenos de ordens diferentes e com resultados, obviamente, diferentes.

Aí, nesse ponto, a grande objeção costuma ser: como vamos poder distinguir a boa ciência da ciência ruim, nessas condições? Bem, eu não tenho nada contra ciências, e critérios, objetivos. Eu tenho contra a mentalidade tacanha de revestir certas metafísicas provincianas com uma numinosidade religiosa, com grandiosidade universal: ou seja, sou contra a ciência vivida psiquicamente como religião. Agora, tenho a favor de muitas ciências e muitos critérios distintos, INCLUINDO os objetivos. A ausência de critérios objetivos, na maioria das esferas da vida, não impede as pessoas de chegarem a consensos, mesmo que parciais (qual não é?), mesmo que transitórios (qual não é?). A gente sabe que existem tendências: desde a moda, até convergências poéticas, estéticas, éticas. Ser impossível determinar objetivamente qual é a melhor poesia não impede sua apreciação, nem que quase-consensos se estabelecam. No resto, as coisas objetivas também vivem de quase-consensos, a própria física tá nessa situação de fragmentação de moldes e modelos, e é assim que o mundo funciona, e sempre funcionou: perspectivas em conflito, um universo muito grande e umas cabecinhas pensando pensamentos, e confundindo-os com o próprio universo, ou não.

¹Tá no capítulo sobre Freud e Jung, no autobiográfico "Sonhos, Memórias e Reflexões" do Jung.

Um comentário:

  1. oloco, iago... falou tudo que eu nunca dou conta de explicar, mas falou com muito capricho mesmo!... tô um pouco afásica

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