sábado, 9 de abril de 2011

A Droga da Proibição


Esse vídeo me marcou não só pela coerência, lucidez e incisividade com a qual a profª. Gilberta Acselrad manobra a questão, mas pelo mero fato de que ela se recusa a responder as perguntas nos termos em que são pautadas. Geralmente, os discursos proibicionistas tanto na mídia quanto na ciência manobram um jargão meio importado das ciências médicas, com um lustre de "objetividade", enquanto valores estão sendo sutilmente veiculados. Por exemplo, logo na introdução à entrevista, a jornalista já solta que a situação do universitário deixa "os estudantes mais suscetíveis à essa vontade de experimentar drogas" - que diabos, onde mais se fala assim? Soa como "mais suscetíveis a contrair gripe". O usuário já é pensado desde o início na posição passiva, negando-lhe discursivamente a capacidade de reflexão, julgamento e de opção. Mas isso é só a ponta do iceberg, pois ao veicular as informações distorcidas e simplesmente inacuradas que as campanhas do tipo "diga não às drogas" veiculam, enquanto ao mesmo tempo se coíbe a pesquisa científica nesse campo, o estado está também cerceando de antemão a mera possibilidade de uma reflexão informada. O próprio termo droga adquiriu o significado tácito de "droga ilegal" na boca do povo, criando o efeito - na atmosfera de desinformação - de que todas as drogas (ilegais) são igualmente perigosas, viciantes e fatais; e, numa inversão que só posso considerar francamente delirante, elas são igualmente perigosas e fatais porque todas são "drogas ilegais", porque recebem a mesma palavra, a mesma designação jurídica, a mesma situação legal. O complemento silencioso é de que "se não fossem iguais, se não fossem perigosas, o estado não as teria proibido e as tratado da mesma forma, né? NÉ?" - pois não é.


A desinformação e os termos enviesados que pautam o "debate" na mídia e no estado não são de forma alguma secundários. O consumo de drogas com potencial destrutivo singular, como o crack, aparentemente está aumentando. Amigos meus que moram ou moraram em cidades pequenas me contam da recente chegada do crack às bocas, de várias pessoas que fumavam apenas maconha começando a consumir crack e muitas se tornando dependentes, etc. Agora, imagine, se você é uma pessoa que já usa "drogas", descobriu nesse processo que o discurso do governo sobre elas não tem nada a ver com o que de fato acontece, e então chega uma droga nova aí - dizem que é perigosa, mas não diziam a mesma coisa do baseado? - droga é droga né, você já é um "drogado", então, porque não dar uns pegas no crack? Miséria humana ensues.

O que a profª. fala a respeito das misturas decorrentes da falta de controle de qualidade também não é brincadeira. O ecstasy, por exemplo, que em tese é o nome popular da substância MDMA, possui altíssima taxa de falsificação. Quase metade dos comprimidos não contém MDMA, e 50% contém estimulantes como a anfetamina (36%) ou dissociativos como o PCP (11%). Essas substâncias são, ao meu ver mas não apenas o meu¹, muito mais perigosas que o MDMA, e o perigo só tende a aumentar com as misturas; não sabendo o que você está tomando, o risco de uma mistura fatal acontecer é muito maior - pois, como eu mesmo levanto na minha monografia, os usuários tendem a exercer toda sorte de controle de dosagens, misturas e contextos de consumo, segundo as informações às que tem acesso. A alta taxa de impureza das pílulas de ecstasy dificulta mesmo que se precise os danos causados pelo MDMA quando consumido a médio e longo prazo como nessa pesquisa. Desnecessário dizer que essa questão, da relação direta entre o proibicionismo, impureza e os efeitos negativos do ecstasy reportados na pesquisa nem é mencionada.

As drogas e a cultura

Durante muitos anos foram argumentos desse tipo, prevenção de danos, os que mais me valeram durante as discussões com meus amigos nas ciências sociais. Eu argumentava também que a legalização ou liberação das drogas seria um golpe fundo, talvez até fatal, em nosso crime organizado - cortando um dos veios principais de dinheiro que alimentam o tráfico. Esses argumentos, conquanto sejam válidos, eram ainda apenas puramente negativos - no sentido de mostrar que a opção de nossos estados pela guerra às drogas era pior do que um mundo onde elas eram legalizadas. Agora me surpreende, e me alegra ver a profª. inserindo no debate o conceito de "cultura"². Porque isso sempre foi algo que me marcou; a recorrência dos alteradores de consciência nos mais diversos povos humanos. Eu chego a dizer que não haja um povo, um povo sequer, que não tenha dado um jeito de descobrir, produzir e utilizar alteradores de consciência, recorrendo aos elementos naturais que estão ao seu redor; se não é uma planta psicodélica é um fungo, senão é um fungo é um fermentado, se não é uma mistura de plantas ou a inalação de sementes moídas ou o caralho a quatro. Parece que esse impulso pra experimentar, modificar a consciência é tão velho quanto a humanidade - porque ele virou um "problema social" só agora? Não quero dizer que não haviam usos danosos ou problemáticos antes, provavelmente haviam; mas mal ou bem as sociedades conviviam com isso, muitas vezes canalizando os usos de forma ritual.

O contexto social e simbólico afeta drasticamente os modos e os efeitos dos usos dos psicoativos; um exemplo disso é o contato muitas vezes catastrófico de povos indígenas com álcool, povos esses que muitas vezes utilizaram psicodélicos como o peyote e a ayahuasca por séculos sem grandes problemas - e bem o álcool vem quebrar as pernas, o álcool por nós socialmente aceito e até mesmo incentivado, enquanto ao mesmo tempo criminalizamos o porte, a venda e o incentivo ao uso dos psicodélicos. Vale lembrar, contudo, o estudo britânico de 2007 que classificou psicoativos segundos riscos sociais, mentais e orgânicos, e que apontou para o álcool como sendo muito mais perigoso que o ecstasy, a cannabis e o LSD. Mas na real é muito difícil medir essas coisas de risco como se elas fossem propriedades DA DROGA. É óbvio que precisamos reconhecer a singularidade de cada substância, da mesma forma que consideramos as diferenças entre temperos quando vamos cozinhar ou a diferença remédios diferentes quando temos dor de cabeça³; mas são os usos, que compreendem também frequência, dosagem, ambiente, contexto simbólico, situação corporal e mental, que vão conduzir à formação de tal ou qual corpo em conjunção com o psicoativo. O consumo é uma constante histórica e antropológica, mas os corpos produzidos variam a cada caso segundo essas variáveis.

Tendo isso tudo em vista, faz sentido pensar na educação para a autonomia que a profª. Acselrad traz pra pauta. E não só porque os usos existem e vão continuar acontecendo independente da lei, e não só também pela lei tornar um "problema social" algo que não precisava sê-lo; mas também porque considero que alterar a minha consciência é parte de minha liberdade afetiva e cognitiva - brilhantemente sumarizada nos mandamentos para a era molecular de Leary: "Não alterará a consciência do próximo" e "Não impedirá o próximo de alterar a própria consciência". A liberdade afetiva e cognitiva não abrange só a proibição, mas também fatos como a medicação forçada de crianças (tipo com ritalina) e dos assim-chamados doentes mentais. Há alguns anos esse argumento - talvez o cerne de minha preocupação com a questão - era respondido com escárnio e exclamações de absurdo!, impensável!, "o povo não consegue escolher". Sinto que a cada dia que passa essa idéia tem se tornado mais aceitável, conforme o próprio discurso da legalização e da prevenção de danos se populariza. Infelizmente, acho que ainda há um grande caminho a trilhar até que essa idéia seja viável na consciência pública mais ampla - e enquanto isso ficamos com tantas quimiodependências evitáveis, mortes e doenças por falta de controle de quantidade e qualidade, guerra com o crime organizado, encarcerações desnecessárias, gastos públicos infindáveis e uma atmosfera de desinformação que, acima de tudo, impede que sejamos tratados como adultos capazes de fazer as próprias escolhas - coibindo o exercício da autonomia e reflexão, desde o início.


¹cf. o link pro estudo britânico dois parágrafos abaixo.
²o mais interessante é que, e bem na linha de raciocínio do antropólogo Roy Wagner, o conceito de cultura é uma invenção de nossa sociedade, e a antropologia o processo de extender esse conceito aos outros povos - às vezes visando convencê-los quase como uma empresa missionária de que eles "tem uma cultura", mas às vezes também visando modificar a nós próprios, construindo um plano comum para se pensar as práticas e idéias de diversos povos. então eu vejo que a presença desse conceito de "cultura" no debate, e seu uso como argumento catalizando todo um saber e pesquisa antropológicos são pra mim uma consequência positiva da existência e da prática da antropologia. me sinto mais útil, como antropólogo e pesquisador da área dos psicoativos.
³a comparação com o tempero e remédio não é aleatória. "Droga" aparentemente vem de "drugue", como uma palavra catch-all pra falar de especiarias vindas do oriente, incluindo os temperos. E, hoje mesmo, temos a ambiguidade da "drogaria" vendendo "remédios" e das drogas ilegais.

4 comentários:

  1. e ainda serve pra hoje, o chico buarque:

    "talvez o mundo não seja pequeno
    nem seja a vida um fato consumado
    quero inventar o meu próprio pecado
    quero morrer do meu próprio veneno"

    ótimo texto, como sempre =)

    é uma pena que esse senso comum de "drugs are bad, mmmmk" (http://migre.me/4dnLS) tem um fundo de ascetismo. Não se pode alterar a consciência pra recreação. Não entendo é como o álcool escapa disso.

    Ou melhor, tem também um fundamento meio que de "essência do ser humano", sei lá. Não se pode alterar a consciência e ponto. Lembro de uma colega de trabalho dizendo que não usava nada que fizesse ela deixar de ser ela mesma, como se uma pessoa fosse pronta e acabada. E não pensava nas coisas que faziam parte dela e ela não conhecia.

    sei lá, só sei que não pode e é isso aí. Tem gente que resume nisso mesmo.

    ResponderExcluir
  2. massa o texto, cara!
    baixei sua monografia :)

    ResponderExcluir
  3. [agora que vi o vídeo] cara, esta senhora é excelente! tô DE CARA. a falta de jeito da apresentadora é impagável, ela não sabe onde se enfiar! Ela é professora de onde? fantástica!

    ResponderExcluir
  4. “... Conhece, usa e procura as drogas, já é um lugar comum se dizer que o uso de drogas é paralelo, ele faz parte da história da humanidade, é especifico de quem tem consciência querer experimentar...”
    Pela experiência que tenho posso afirmar que mesmo os tipos aparentemente mais conservadores terminam afirmando que gostariam de experimentar as drogas ilícitas, porque afinal como você vai discursar com tanta convicção sobre algo que não conhece. A questão, no meu ponto de vista, é conhecimento, os que possuem determinados conceitos não afundam em vícios, como os que possuem objetivos para alcançar, ai é claro nos temos os nossos universitários que a grande maioria quer chegar a algum lugar. No entanto, não podemos esquecer-nos da parcela da população que vive na miséria, em que o álcool, a maconha (fora de moda por aqui), e o crack, servem como fuga de uma realidade que não é adequada para nenhum ser humano. Quem não é critico o suficiente tende a generalizar.
    No entanto, nas sociedades antigas, não existiam drogas sintéticas, que fisiologicamente viciam mesmo (não que as outras não tivessem efeito semelhante), sabe eu afirmo por que estou quase concluindo meu bacharelado em farmácia e apesar de não ter estudado especificamente essa questão, sei o suficiente para afirmar que nossas novas drogas, ilícitas como são chamadas agora, tendem a ser devastadoras, sendo necessário um período especifico para que o organismo se acostume a viver sem elas para quem resolve parar, e o psicológico ainda lhe mantém dependente, muito certo o que ela afirmou que: “... qual seria o papel do estado com a legalização: seria controlar a elaboração, a qualidade de todas as drogas que existem e outras que estamos inventando... controlar essa elaboração e a qualidade, ajudar as pessoas que se sentirem prejudicadas, que sofram por essa liberdade, que é uma liberdade social”
    Pô, a humanidade detém um conhecimento tão amplo que é capaz de contornar perfeitamente os efeitos maléficos das drogas, o conhecimento atual permite o desenvolvimento de substancias que não tenham tantos efeitos adversos como as atuais. Mas como as drogas são ilícitas por que se preocupar?
    “... Uma atitude normal deixar que eles experimentem e que cada um tenha a responsabilidade de usar da melhor forma possível...” e é mesmo. É claro que é um alucinógeno, cara que besteira que essa repórter fala se não tivesse nenhum efeito ‘legal’ quem ia querer usar...

    ResponderExcluir