segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Reciclo, logo existo

Aqui em casa a gente arranjou um esquema com um dono de um sacolão próximo pra reaproveitar à vontade os dejetos de frutas e legumes do sacolão, duas vezes por semana, em troca de varrer a área onde eles são armazenados e colocá-los pra fora à tempo da coleta de lixo. Essa prática, que a gente costuma chamar de "recicle", foi de longe a descoberta que mais me mindfuckeou esse ano.

Todo dia quantidades colossais de alimento que poderiam perfeitamente ser consumidos são jogadas fora por questões estéticas, por estarem com uma partezinha estragada, ou, com uma frequência surpreendente, por nenhum motivo que eu consiga imaginar. A gente pega comida suficiente pra alimentar por três dias uma casa com algo entre dez e quinze pessoas, enxendo um carrinho de supermercado até o talo; no processo, deixamos pra trás praticamente METADE das frutas e legumes que poderíamos reaproveitar, simplesmente porque não conseguiríamos consumí-las antes de estragarem.


Na verdade, o que é jogado fora nesses sacolões não é nada perto do que se desperdiça antes - nas grandes distribuidoras, tipo CEASA¹. E isso porque antes de chegar lá um monte de rango foi jogado fora nas próprias fazendas e no processo de transporte. Ou seja, o recicle do sacolão cobre apenas a pontinha da pontinha do desperdício, a pontinha mais próxima do consumidor final.

O peso no bolso

Semana passada eu perdi o recicle - todo mundo viajando, com a família, sabe como é - e por isso hoje fui forçado a ir comprar frutas. Acho que em 2010 eu fiz isso uma ou duas vezes no máximo, e em pequenas quantidades. E no processo de compra, eu tenho de novo a percepção do quanto eu economizo com essa bagaça de reciclagem! Duas bananas, três tomatinhos, duas cebolas, duas laranjas: R$ 4,10. Tá certo que comprei em um lugar particularmente caro, mas ainda assim. Duas vezes por semana a gente traz, aqui pra casa, pelo menos 20 tomates, 40 bananas, 15 laranjas, mais uma tonelada de batata, limão, abobrinha, berinjela, xuxu e jiló (tem quem goste), repolho e inhame, batata doce e abacaxi, goiaba e maçã e pera e até fucking morangos, uvas e kiwi (sem zoeira! mas ISSO não é sempre). Se eu fosse comprar esse hortifruti todo não saía meeesmo menos de 40R$, isso sendo conservador. Duas vezes por semana, quatro vezes por mês, deixa eu ver: no mínimo 320R$.


Tá certo que o recicle exige uma certa experimentação e ousadia: você precisa vencer um monte de preconceitos. Afinal, você tá comendo LIXO, e muita coisa faz jus à palavra, ao menos nas aparências. Leva um tempo até sacar o que você pode só cortar fora, e o que inviabiliza a fruta/legume inteiro. Nesse sacolão, como é um esquema combinado, as frutas e legumes vem relativamente limpos e tal, mas em muitos casos o recicle é no saco de lixo mesmo, sem combinado nenhum. E aí o rango tá misturado com outras coisas desagradáveis, exigindo cuidado e esforço pra selecionar, limpar e armazenar. De minha parte, posso dizer que não passei mal por causa de rango nenhuma vez esse ano, comendo recicle todo santo dia. E como comi bem!

Uma vez que cá em casa o recicle é pra alimentar um pelotão de gente, acaba consumindo uma manhã inteira; levantar cedo, sair com carrinho, passar umas horas selecionando e arrumando, voltar com carrinho carregado, subir o bequinho CILADA do fim da rua, ufa! Academia pra que. Depois, limpar e conservar: dando um tratamento bem asseado, lá se vão duas, três horas. Banhando tudo na água com limão e umas gotinhas de vinagre, cortando as partes podres, etc. Ainda assim, como é muita gente, quando todo mundo faz sua parte nesse trampo é algo que eu preciso preocupar duas vezes por mês.

Indo mais fundo: freeganismo, política e ecologia

A questão não é só de economia. Por um lado, tem a consciência limpa de saber que estou comendo algo que teria sido jogado fora, ou seja, de que pelo menos nesse sentido ao menos eu não peso no ecosistema, nem dou grana pro agronegócio predatório. Por outro lado eu conquisto mais um pouquinho de minha autonomia em relação ao capital: por mais que o reciclar dê trabalho, eu não tenho patrão, nem circulo moeda nenhuma. Acho que esse ponto é muito caro às pessoas que me ensinaram a reciclar - os freegans. Já ouviram essa palavra? É um combinado de vegan com free (grátis). O freeganismo consiste basicamente na prática de viver sem grana (ou com o mínimo de grana possível), boicotando a sociedade de consumo². Pra citar a frase duma música de um amigo meu: "Eu posso até comer seu lixo / mas não compro suas merdas". Eu não sei se *sou* freegan, acho que não tenho cacife pra me atribuir essa honraria - mas é uma coisa que definitivamente me inspira. A relativa gratuidade de minha alimentação só é possível, claro, porque a dieta cá em casa é basicamente vegana. Reciclar queijo, ovos, carne e derivados é mais difícil, pelo menos aqui em minhas redondezas. E não recomendo a ninguém comer carne apodrecendo! Os grãos normalmente a gente tem de comprar. Mas, se você vai ter uma dieta vegana, vai precisar sair do arroz-com-feijão, e a abundância e variedade de frutas e legumes facilita pra caramba!

A coisa do freeganismo começou nos meados dos anos 90, com o movimento precariamente nomeado "anti-globalização", embora muito disso tenha seu eco nas atividades do grupo hippie dos Diggers da década de 60 (e, é claro, nos sobreviventes urbanos de todos os tempos). Hoje em dia não é mais uma coisa restrita a punks e ativistas; lá na gringa os hipsters, que são os equivalentes de nossos moderninhos, andam praticando o dumpster diving, que traduzo grosso modo pra "se jogar na lixeira". É, aquelas lixeiras gigantes quadradonas dos filmes americanos. Se aqui é bem fácil conseguir rango, lá você consegue de tudo, desde TV de plasma (o causo que ouvi a esse respeito foi no japão) a carros (em NY se me lembro bem). Quero só ver quando a moda pegar aqui (se pegar), a galera empertigada e colorida e limpinha dos boates moderníssimas toda abrindo saco de lixo! Vai ser bonito de ver.

O recicle - não só em sacolões, recicla-se de tudo se você tiver a disposição de aprender a fazer reparos básicos - me demonstrou visivelmente a dependência de nossa sociedade de mercado das situações de ESCASSEZ. Afinal, se há excesso, pra que vender e comprar? Você dá, tem de sobra. Então, o capital funciona através da produção de escassez artificial: seja te convencendo de que tudo que você comprou não é suficiente (afinal, você ainda não tem esse NOVÍSSIMO PRODUTO IMPERDÍVEL) seja descaradamente jogando fora.

Reciclar não resolve o problema estrutural do desperdício; provavelmente, se todo mundo subitamente decidisse reciclar (só) nos sacolões ao mesmo tempo, não daria pra todos. Desnecessário dizer que estamos muito longe de chegar nisso. Enquanto isso, é um jeito de economizar, de conquistar relativa autonomia em relação ao capital, de questionar o que é 'produto' e o que é 'lixo', de desconstruir os próprios preconceitos. O recicle, infelizmente, não impede que você engula quantidades pouco saudáveis de agrotóxicos (da mesma forma que engoliria comprando a comida, claro), além do fato de que alimentos frescos algumas vezes tem paladar melhor, e mais nutrientes. Por isso, enxergo como uma estratégia temporária - enquanto você não tem uma horta orgânica grande e produtiva o suficiente pra ser auto-suficiente nesse quesito, dá-se um jeito!

Anarco-donos-de-casa de todo o mundo: reciclemos!

¹Dá pra fazer recicle no CEASA também, de vez em quando o pessoal cá de casa vai lá de bicicleta, mas é meio longe. Se você mora perto - o que está esperando?
²Claro que o freeganismo vai bem além da reciclagem, mas calma, uma coisa de cada vez, né? Do resto a gente fala outro dia.

5 comentários:

  1. O que vocês deixam para trás no sacolão não poderia ser levado para fazer compostagem e servir assim de adubo? Veja bem, tudo aquilo que deixam para trás porque não vão consumir será jogado no lixo e desperdiçado totalmente. Transformar em adubo é dos males o menor?

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  2. O lixo orgânico que a gente mesmo produz já é até demais pra nossa atual demanda/capacidade de compostagem (lembra que produzir composto leva meses)... Além de que precisaria de ir o dobro de pessoas reciclar, com outro carrinho, pra poder trazer mais rango, uma vez que já enxemos o carrinho até o talo! Uma vez que a gente só a duras penas tem conseguido manter a regularidade no recicle, é algo quase impossível. Em todo caso, eu nem de longe me sinto moralmente responsável pelo lixo dos outros: se fosse assim, eu carregaria o peso do mundo nas costas... To de boa. (: (anyway, valeu pelo comment. você sabe que auto-estima de bloggeiro se sustenta nessas coisas, né. hehe)

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  3. Impressionante! Eu não iria tão longe de achar um dever moral não participar da economia do desperdício. O que só quer dizer que eu admiro mais ainda vocês por estarem aproveitando tudo isso que ia pro lixo. Lindo. Fico esperando mais seu sobre freeganismo e etc. Um abraço!

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  4. Valeu, Balan! Não sei quando vou escrever sobre freeganismo de novo (tanto assunto pra abordar), mas tá na pauta de qualquer forma, fica ligado. Essa de dever moral eu também sei lá, não gosto muito de pensar nesses termos - pra mim é mais consistência ética, reconhecer as consequências de minhas ações e arcar com elas. O problema que vejo na economia não é só desperdício, mas toda sorte de exploração; e nesse ponto me alinho com os freegans. Em todo caso, acho que o ponto de meu post é que recicles como esses podem ser feitos por qq pessoa, e são relativamente fáceis de fazer. Quero espalhar a idéia mesmo. Daí, fica a provocação: se achou bonito, cogitou mexer com isso vc mesmo? Abraços e obrigado pela visita!

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  5. Também achei muuuito bacana :)
    O foda é vencer preconceitos.
    Vim lá da Lola.

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