terça-feira, 10 de maio de 2011

Como fiz para mim um Corpo sem Orgãos


"Conectar, conjugar, continuar: todo um 'diagrama' contra os progamas ainda significantes e subjetivos.  Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao agenciamento mais profundos em que estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência. É somente aí que o CsO [Corpo sem Orgãos] se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. Você terá construído sua pequena máquina privada, pronta, segundo as circunstâncias, para ramificar-se em outras máquinas coletivas." ¹

Doido de ayahuasca, em um sítio nas imediações de BH, deitado em um colchão abraçado a uma série de pessoas aquecendo-se com os corpos, enrolados em casacos e cobertores. Parafraseando Deleuze e Guattari: "Um lugar, uma potência e um coletivo". Conforme o chá começa a fazer efeito o Sonhar irrompe na consciência e se torna palpável; com ele vem uma confusão de sensações, intensidades, ondas de excitação, imagens vistas com olhos fechados e luminosidades coloridas geométricas com olhos abertos.


O sonhar: partimos da Sombra, nos estratos mais baixos, próximos à inconsciência - os delírios gato-rato, as paranóias, medos, vergonhas e raivas, com o frescor e ingênua crueldade da consciência recêm-desperta da longa noite inorgânica, o devir-animal no fundo do humano. Um visitante despreparado - como tantas vezes fui! - pode se assustar com os jogos de sombra que colorem os estratos baixos. Mas o imaginário só quer te enredar em suas histórias, e numa observação atenta é possível, momento a momento, reconhecer sua verdadeira natureza: corpo, sensações no corpo, sensações corporificadas. Os estratos mais baixos são plenos de perigos, mas apena enquanto você não reconhece neles a marca da corporeidade, apenas quando não descobre: "então sou eu afinal!". A Sombra possui a marca do corpo pois está apenas a exercer sua função - para a sobrevivência, para a manutenção do organismo - é preciso saber construir um inimigo, seja para se lutar para afastá-lo, seja para se curá-lo e torná-lo aliado. É imprescindível ter dentro de si o inimigo para que possamos projetá-lo para fora e então reconhecê-lo lá.

É exatamente a estranha autoridade do corpo sobre o Sonhar, a subserviência da Sombra ao corpo, que abre as portas para que então desfilem os estratos mais altos, as fadas do meio-dia, onde encontramos os sonhos luminosos e poderosos, as imaginações aliadas do ego, os anjos encumbidos de organizar o ser em uma imagem de totalidade, cada um em um cargo, uma lugar, uma função, produzindo no corpo o organismo. É preciso ver neles também a marca do corpo, e reconhecemos nosso próprio lugar nessa hierarquia, o lugar que ocupa o sujeito, o seu nome, a sua história, esse fantasma - da mesma natureza e substância que todo o resto do sonhar! - esse fantasma a quem chamo de Eu ou ego e que cuida ele mesmo de seus pequenos espíritos, das pequenas inúmeras vidas em sua jurisdição, o Eu que cuida de sua carne e permite a ela contornar as corporificações fragmentárias, vazias, cancerosas - mas isso explico melhor depois.

É importante não travar em nenhum lugar, não se deixar territorizar nem mesmo quando atravessando o território do eu - se quiser montar o seu Corpo sem Orgãos. É preciso incluir tudo, fazer todos os vasos se comunicarem e por os fluxos para circular; a ayahuasca vai cumprir sua parte no programa, rizomando por seu corpo e forçando a energia a escorrer, subvertendo as ligações hierarquizadas que sustentam os diques e bloqueios, fazendo tudo se ligar transversalmente; ela vai fazer o Sonhar atravessar seu corpo em ondas, e tão pior se você decidir resistir. É preciso incluir tudo, desde as imaginações mais vis até as imaginações mais belas, porque tudo isso é a potência do corpo, você pode dar vida a todas essas fadas, fantasmas e imaginações, para viver com elas ou dominá-las ou ser dominado, afetar e ser afetado, segundo seu programa e seu processo. É preciso abarcar todo sonho para que você possa fazer dele corpo, e afirmá-lo. Como o Aleph de Jorge Luiz Borges, o Sonhar é (também) esta pedra mágica que poderia ser examinada ao infinito, plena de um poder - você sabe como usá-lo? Não há receita pronta, há apenas um artefato e a possibilidade de experimentação, de invenção.

Condensar este contínuo que é o Sonhar até uma gema intensa, uma pedra mágica, um ovo cósmico, um universo em miniatura que é seu, somente seu, ao menos enquanto conseguir se manter em relação de aproximação com ele. E depois de feita a gema mágica dos bruxos - sem deixar nada escapar - é hora de usá-la, de fazer algo acontecer com ela; não bem "usá-la" num sentido de sujeito-manipulando-objeto, bem porque ela te inclui, ela é maior que você, você é apenas um dos espíritos variantes da potência da pedra mágica. Você a usa e é usado por ela, você coloca a pedra mágica no centro ali onde antes estava o ego, e o sujeito agora pode oscilar ao redor da pedra, circulá-la como um corpo astronômico, consumir as intensidades que ela comporta, transitar pelos platôs aos quais ela pode te ligar.


A pedra mágica é um circuito que você fecha consigo mesmo, um circuito que se fecha em um corpo, apenas para abrir este corpo às conexões transversais - a pedra vai de você ao inconsciente e de volta a você, de uma vez só - delimitando não um castelinho sitiado mas um campo de experimentações. Brinquei com minha pedra circulando ao redor dela, de um lado ao outro - e a pedra permite que você explore idéias tão disparatadas, tão extremas, tão opostas, como marcos geográficos abrindo um norte-sul e um leste-oeste - e a pedra te permite percorrer as nuances, os gradientes, o continuum entre os opostos como quem percorre um platô - e a pedra povoa esse platô com suas próprias criaturas, suas intensidades, seus fluxos, suas fadas, fazendo meu pensamento girar como um moinho empurrado pela água, indo de um lado ao outro em uma circularidade que por si só não era restritiva, era uma máquina que funcionava, algo se produzia. E o que se produzia era exatamente isso, a sabedoria ou o conhecimento do que estava se passando, mas uma sabedoria sem pretensão de totalizar a pedra em seu sistema e sim contente de fazer parte dela, de nela ser máquina e por ela ser maquinada, uma sabedoria que não significava nada além de si mesma - mas se compunha em maquinismo com sua exterioridade. E a pedra é o corpo, o corpo pleno "sem orgãos" do qual falam Deleuze & Guattari. Eu surfava ao redor da pedra, deslizava por suas intensidades como ondas, às vezes suaves e às vezes violentas, um átimo de vantagem momento-a-momento sobre a possibilidade de capotar, intervindo apenas pra me certificar de que a minha gema mágica ainda estava ali por perto, firme em sua posição.

De repente o processo é cortado, interrompido por um grito vindo de fora; talvez interrompido seja um entendimento por demais parcial, pois o processo continuou mas se reterritorializou sobre o que me rodeava. Uma amiga ralhava enfurecida com a outra, ambas doidas se ayahuasca também. Cogito intervir, oscilo entre o certo e o errado a se fazer nessa situação. Não entendo o que acontece e fico a imaginar, até que percebo que não faz sentido ficar ali sentado associando paranoicamente; melhor entrar na cena e esclarecê-ĺa para mim. Uma das amigas se trancou no banheiro e a outra chora sentada em um degrau da escada.

Ao entrar no cômodo, ela se exalta - eu pisei em seu vômito (que é um subproduto comum na ayahuasca), eu pisei em seu vômito e ela não está preocupada com eu me sujar, e sim com o pobre vômito - "o meu feto, é o meu corpo, é ele que está aí, e ela mexeu nele, eu confiei nela e ela roubou minhas coisas" - o discurso vaza por fora da lógica convencional quando estamos nas esquizes como minha amiga está. Eu não entendo se é um não um feto literal, passo pela mente a improbabilidade dessa história, mas de qualquer forma aquele vômito esparramado importa a ela nesse momento como importa um filho, e quem sou eu pra discordar! Depois, ela me explicou que em nenhum momento a distinção entre o objeto-vômito e o símbolo-feto tinha lhe escapado de todo, e que falara assim sem explicar porque confiava que eu entenderia; tinha apenas decidido se entregar inteira ao processo. "É o meu corpo, eu estava fazendo ele, eu estava compondo meu corpo, e ela atravessou o meu rolê!". Lembro da advertência de Deleuze & Guattari: "Não vão te deixar experimentar em seu canto". "Eu estava me completando, me fechando assim como um feto, e ela interrompeu, eu disse a ela para não mexer, eu disse que eu mesma ia limpar mas ela não quis nem saber; ela me afrontou".  Minha amiga estava compondo seu próprio Corpo sem Orgãos, seu próprio feitiço; ali onde os símbolos habitam o corpo, ali onde não significam nada nem podem ser interpretados, apenas vividos; ali onde não se distinguem sujeito de objeto, na "participação mística" de que nos fala Jung (citando Lévy-Bruhl)· Se tornara um feto pleno de potência e capaz de reinventar a si mesmo, aprenderia de novo a andar e a falar, quem não quer para si essa possibilidade?³ Era essencial, às vistas da experimentadora, que ela mesma limpasse o vômito, pois ele veio de seu corpo e portanto era seu corpo, ela não podia deixar nada de fora que viesse a solapar sua autonomia, extrair fluxos do circuito que estava a fechar para si. E a intrusão da outra foi para ela acima de tudo maternal; funcionou como uma intrusão do édipo, da hierarquia familiar, sobre sua experimentação - o mesmo édipo que rouba de nós o corpo inserindo a falta ou castração no âmago da produção desejante. Ela havia projetado sua energia no corpo e o corpo-feto lhe tinha sido tirado, o bebê tinha sido roubado; o importante, pra mim, era impedir então que ela tentasse continuar o processo no vazio, girando ao redor da falta de um corpo, desterritorializando ao infinito, culminando na esquizofrenia ou na catatonia.

Peguei-a carinhosamente pelos braços, chamei seu nome, lembrei-a de que não existe nada nesse mundo, nada, que possa nos afetar daquela forma, produzir tal ressentimento e mágoa e raiva, a não ser que entreguemos o direito às coisas de fazê-lo. Era preciso fazê-la reunir a energia em si de volta, recuperá-la para seu eu; "você ainda está viva e pode produzir o seu corpo, em outras condições, o feitiço falhou mas a potência ainda está em você". E então ela voltou a si, ou seja, voltou a se centrar no sujeito, no ego, voltou a representar e a interpretar e a distinguir sujeito e objeto - "eu sei que é só meu vômito e não é mesmo um feto, mas isso não anula nada" - e eu concordei com ela, não anula, mas o crucial para mim estava resolvido. Porque o ego, o sujeito, a representação e a interpretação podem ser usados precisamente pra isso, pra interromper as esquizes que se fragmentam ou prolongam no vazio, e talvez esse seja seu melhor uso. Nas palavras de D&G: "É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam. e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante"². O resto, quando funciona bem, deixemos na mão do corpo ou pedra mágica. "Eu sei que não dá pra voltar atrás, mas estou de luto", ela me disse. Assenti. Não sabia julgar esse luto, dizê-lo "certo" ou "errado", não queria gastar minhas forças com isso - satisfazia-me em saber que era o eu dela que respondia, que ela tinha resgatado energia suficiente de seu feitiço abortado para poder se afirmar em meio à esquize. Concluí com as palavras mais carinhosas e firmes que pude e deixei-a lidar com seu luto.

A outra tinha interrompido o processo da primeira, provavelmente em sua ingenuidade e paternalismo de querer limpar o vômito - a outra não deu ouvidos aos protestos da experimentadora e insistiu em inserir seu corte. Mas eu via a situação toda além do bem e do mal, não para "desculpar" ninguém, mas sim evitar que se pensasse em culpa - manter tudo no presente, nas opções, no corpo, sem a necessidade de ressentimento. Por acaso nos ressentimos do escorpião que pica quando o ameaçamos, quando ele é afetado de forma a ativar seu reflexo de picada? Tolo de quem se lança nesse martírio. As duas que fizessem suas opções, seus julgamentos, de tentar se resolver ou se afastar; pois são elas que vão escolher e estavam escolhendo de qualquer forma e tão melhor se eu reconhecer sua autonomia aí. Vi a situação além do bem e do mal pois grito e o ralhar da primeira amiga interromperam tanto o meu processo quanto a segunda amiga interrompeu o da primeira - os gritos também ignoraram sumariamente as aspirações minhas e dos outros na sessão. Mas eu optei por não julgar e sim por entender o que se passava. Talvez essa opção só faça sentido em meu contexto, e não no delas - não existe opção "certa" - eu poderia muito bem tomar outra opção caso a situação fosse outra. Vi ali a possibilidade de usar a minha pedra, usar a minha magia - via palavras e afetos - como usaria um xamã em um caso de possessão: interrompi a esquize - ou melhor, interrompemos, eu e a amiga trabalhando juntos - e reinstalamos o nome próprio, como quem insere uma peça de volta em uma máquina. E acho que provavelmente o processo, a esquize, não se estenderia no vazio, talvez sem minha intervenção ela até mesmo montasse alguma máquina que lhe refizesse o corpo que lhe permitiria contornar a falta e a castração. Como saber? Tudo que fiz é parte de minha experimentação também, não existe fórmula pronta para a vida. A pedra comporta em si todos os limares e nuances das dimensões que ela aglutina e a única forma de vivê-la é percorrê-la como um nômade, montá-la como um bricoleur, e é assim que venho aprendendo a fazer pra mim um Corpo sem Orgãos.

¹Deleuze e Guattari, Mil Platôs vol. 3, "Como criar para si um Corpo sem Orgãos", p. 24
²Deleuze e Guattari, Mil Platôs vol. 3, "Como criar para si um Corpo sem Orgãos", p. 23
³"O ovo é o CsO. Se ele está ligado à infância, não o está no sentido de uma regressão do adulto à criança, e da criança à Mãe, mas no sentido em que a criança, assim como o gêmeo dogon que transporta consigo um pedaço de placenta, arranca da forma orgânica da mãe uma matéria intensa e desestratificada que constitui, ao contrário, sua ruptura perpétua com o passado, sua experiência, sua experimentação atuais. O CsO é o bloco de infância, devir, o contrário da recordação de infância. Ele não é a criança 'antes' do adulto, nem mãe 'antes' da criança,: ele é a estrita contemporaneidade da criança e do adulto, seu mapa de densidades e intensidades comparadas, e todas as variações sobre este mapa." - Deleuze e Guattari, Mil Platôs vol. 3, "Como criar para si um Corpo sem Orgãos", p. 27

Nenhum comentário:

Postar um comentário