quinta-feira, 2 de junho de 2011

Post onde respondo a "15 perguntas que as feministas não sabem responder", parte 2

"Um orgasmo é melhor que uma bomba." (fonte)


Na primeira parte desse texto eu defini feminismo como "teoria e prática do combate ao patriarcado", sendo que o patriarcado não é o machismo, nem são os homens - e sim a estrutura que organiza, sobrepõe, corpos e palavras, desde o início uma estrutura de violência contra a mulher. Começamos então a caçar pela economia, pela 'cultura' e por nossa história o que é exatamente essa estrutura. Aos interessados em ler a parte dois que não tenham lido a parte um, recomendo muito que voltem lá e leiam!

O patriarcado constrói tanto um mercado quanto uma hierarquia na qual nos situamos conforme investimos nosso desejo em sua estrutura. É uma questão de valores, de ganhar ou perder pontos simbólicos como se ganharia ou perderia dinheiro em um mercado. Como no mercado, é uma situação de escassez, que depende da escassez, FABRICA a escassez para se manter. Sabe aquele mote de que "você nunca pode ter o suficiente"? De que "quanto mais se tem, mais se quer"? Isso parece um senso comum de nosso mundo, algo tão natural quanto o ar que respiramos, mas essas colocações só soam verdadeiras por causa de um contexto histórico muito específico - por causa das contingências, dos acidentes, dos encontros históricos que deram origem ao mundo em que vivemos hoje.

A primeira vez que cruzei com essa idéia foi muitos anos atrás, nas aulas sobre o sociólogo Max Weber - o professor explicou o que Weber chama de "racionalidade tradicional", distinta da racionalidade capitalista: nessa lógica, se você trabalha - digamos, como jardineiro - ganhando 50R$ por dia, e um dia por qualquer razão ganha 100R$, a racionalidade tradicional conclui que o lógico é deixar de trabalhar o dia seguinte, ao invés de continuar ralando pra juntar ainda mais. Depois fui ter contato com o (aliás, renomado) antropólogo Marshal Sallins, que argumenta que as sociedades caçadoras-coletoras operam, na maioria dos casos, numa 'economia da abundância', onde o importante é evitar acúmulo. Claro, se você é um nômade, não tem utilidade armazenar mais coisas do que pode carregar! Elas só vão pesar nas suas costas. Mas mesmo sociedades que praticam agricultura ou pecuária mais ou menos sedentárias ainda se evadem à lógica do mercado: troca comercial é algo que, na melhor das hipóteses, você faz com seus inimigos. Porque você tentaria tirar o máximo de lucro às expensas de alguém que é "dos seus"? Porque construir uma situação onde um só ganha quando o outro perde? Essas sociedades não deixaram de inventar o mercado porque eram burras demais, simples demais, elas ativamente o recusaram: os antropólogos apontam a recorrência de festas estilo potlach, festas onde a graça está em destruir os acúmulos, as vezes até competindo entre si pra ver quem doa mais uns pros outros, quem destrói ou desperdiça mais acúmulo, para que enfim não haja acúmulo. Acumular é a prática característica de mercados de escassez, acúmular por segurança, acúmular sem saber porque. Ontem vi uma manchete na capa de uma dessas revistas de negócios, "existe vida após a aposentadoria?" - executivos e CEOs de várias empresas contam sua experiência em continuar trabalhando até vinte anos após a aposentadoria. Juntando, juntando, pra que os filhos tenham uma vida segura e possam juntar mais e mais e mais. Tá certo que competir pra ver quem doa mais talvez não seja uma solidariedade lindamente descompromissada, mas ilustra a relação entre a abundância e a dádiva, e a oposição dessa lógica à economia de escassez e ao seu característico acúmulo.

Chefes Tlingit em roupa completa de potlach, 1904 (fonte)

A economia libidinal do patriarcado é um mercado de escassez onde todo mundo perde, mesmo quem ganha. Porque no topo da pirâmide temos um ideal, temos uma idéia - o "macho alfa" - que pode ser vivida como um papel, pode servir como lugar/posição de enunciação, mas jamais se confunde com as pessoas que ocupam esse lugar. Nenhum homem é o macho alfa, ponto. Na medida em que ele às vezes simplesmente não quer trepar, na medida em que ele sofre ridículo, na medida em que ele brocha, sente tesão por outros homens, na medida em que ele se sente fraco, na medida em que ele empobrece, na medida em que ele se apaixona ele se afasta desse ideal. E se essas coisas não aconteceram ainda com esse homem, elas no mínimo pairam sobre ele como potencial, como risco constante. Ele está em dívida constante e inescapável com o ideal que incorporou. Ele perde na medida em que devêm macho alfa quando vai pra cama com uma mulher não porque ele sente afeto, tesão, ou o que for, mas pra marcar pontos. Parafraseando o mestre Gaiarsa, tem gente demais no quarto dele - todos a alcatéia masculina o acompanha em espírito quando ele transa, a vontade dele é terminar a foda e sair correndo pra contar pros amigos o que rolou, foda-se se foi bom pra ele. Ejacular, gozo mecânico, vá lá, mas prazer mesmo - enquanto algo mais do que alívio - eu duvido que ele tem, porque duvido de sua intimidade com seu próprio corpo e com a pessoa que ele tá, duvido que ele se sente à vontade quando o cu dele pisca no prazer, sim, o cu apertando e piscando durante o sexo pra gerar prazer, a gente faz isso na maior parte das vezes inconscientemente, mas faz, podem observar em si mesmos. O corpo do macho alfa foi recortado hierarquicamente também, e ele precisou renegar a maioria de seu potencial orgástico, a maioria de seu fluir sensorial-emocional, o cu, a pele, pra poder se aproximar do rígido transcendente que é o topo da pirâmide. O homem no patriarcado é feito também objeto, objeto de sucesso, sua auto-imagem está atada a seu sucesso econômico - lê-se sua sujeição ao trabalho, sua objetificação como objeto de trabalho - e seu sucesso entre a alcatéia masculina, e por isso ele não faz as coisas por si, por seu corpo, por seu desejo, ou melhor, ele fez de seu corpo objeto e fez de seu desejo desejo de sucesso entre os homens. E aí está a sua miséria.

E ele está com uma mulher. Parte do gozo simbólico fantasioso dele provavelmente é um gosto misógino - porque pra ele, a mulher com quem ele trepa está perdendo alguma coisa, está perdendo status. Ao menos na medida em que ele conseguir evadir o casamento e o compromisso. Talvez, na cabeça dele, ela esteja apenas atrás do sexo pra "apanhá-lo" num compromisso. Talvez não e por isso será uma puta, uma vadia, uma coisa inumana digna de violência. A mulher que se enquadra no padrão de beleza e conquista pra si um macho alfa está na posição logo abaixo da pirâmide sócio-libidinal, é a "mulher objeto" bem sucedida. Ela não se iguala ao macho alfa porque enquanto ele é capaz de, numa faixa estreita, ganhar ganhando (ou seja, de viver sua sexualidade e ganhar socialmente com isso), ela nunca ganha a não ser perdendo, e nunca perde a não ser ganhando: se ela goza, se ela transa, ela perde pontos, ela desce pela pirâmide e o limite é o chão, a pior de todas as situações: ela é educada desde cedo, REPRIMIDA desde cedo, com um rigor muito maior que qualquer homem, para "protegê-la", porque família nenhuma quer esse destino miserável a suas filhas. A mulher bem sucedida no patriarcado ainda é objeto de chacota da alcatéia masculina, ela ainda está restrita à posição de enunciação meio-gente-meio-bicho à qual relegamos as mulheres, mas enquanto se mantiver um "objeto" bem sucedido, rica, arrumada, siliconada, gostosa, suscitará um tipo específico de apreciação e desejo por parte dos homens, o que a confere certo poder. Como quem já sofreu bullying por parte de mulheres-objeto bem sucedidas, pontuo com propriedade: elas estão logo acima dos "homens losers" na hierarquia (embora, comparadas a eles, esteja sob o risco de cair ainda mais abaixo). Os homens losers são aqueles que não pegam mulheres suficientes (às vistas da alcatéia),  não tem grana suficiente, são todos os homens que desviaram demais do macho alfa por qualquer razão, mas ainda são homens, pretendentes aptos a quem sabe incorporar o macho alfa. E logo abaixo deles está o chão, aonde vão parar todos os outros. Gays, lésbicas, trans, mulheres feias, mulheres pobres, e assim vai: essa é a base da pirâmide. Esses são aqueles que sofrem as piores objetificações, aos quais é negada a humanidade: são violentáveis, dispensáveis, dignos de pena, raiva ou, quando muito, de serem ignorados. São aqueles que não ajuntam pontos na hierarquia do patriarcado seja porque desviam de sua matriz binária heteronormativa, seja por serem mulheres que não se prestam a uma objetificação bem sucedida ('feias, pobres').

Praça Sete/Belo Horizonte: Ele, sempre ele... (fonte)

Simbólicamente, todos esses ocupam o lugar da mulher: a eles falta o FALO, falta o ideal transcendente no topo da pirâmide. E a pirâmide mesma é uma distribuição da falta em relação ao falo transcendente, uma economia de escassez propriamente dita, segundo uma regra ideal que ninguém pode alcançar e que faz com que todos percam. A posição esquizofrênica, dividida, na qual as mulheres são colocadas tem tudo a ver com isso: enquanto os homens vão se distribuir pela pirâmide em distâncias relativas ao falo, e ganham conforme se aproximam de incorporá-lo, e perdem conforme se afastam dele, as mulheres são desde o início um outro, elas nunca podem ter o falo para elas - podem, na melhor das hipóteses, serem objeto de alguém que o possui - e elas estão sempre meio lá em cima, meio lá embaixo, só podem ser bem sucedidas deixando de ser elas mesmas, e se são elas mesmas, são relegadas ao pior dos mundos. E por isso mesmo o feminino é uma abertura pra invenção: no seio dessa divisão, dessa fissura, está a demanda e o devir criativo de algo novo. Não há "a mulher" exceto como outra do homem, em relação com o falo: e por isso "a mulher" é um processo de invenção em aberto, "a mulher" contém em si todos os 5000 gêneros que podemos inventar.

A nossa dívida para com o falo pode ser chamada de "castração", mas não caiamos em psicanalismos. Somos todos castrados, mas essa castração é só o índice, a marca de nossa vinculação ao patriarcado - 'você deve faltar pra poder funcionar socialmente'. Somos colocados em dívida para que nos mantenhamos fiéis à essa estrutura, à essa máquina social. Somos colocados em dívida apenas pra que tenhamos medo, muito medo, de se afastar desse mercado libidinal e cairmos na base da pirâmide. O mercado libidinal da falta, a pirâmide do falo, é o patriarcado em sua face mais nua, uma estrutura de distribuição da escassez. O falo começa por recortar homens e não-homens, sendo os homens aqueles que concorrem ao falo e os outros, não-homens, aqueles que podem no máximo se fazer objeto de homens pra se beneficiarem de sua posição relativa da na pirâmide. A mulher e os outros são desde o início objetos a se ganhar ou destruir pela lei do falo, e relegados ao plano do corpo, a uma situação de nem-gente-nem-bicho, o patriarcado tenta fazer com que sequer possam FALAR disso (e daí a velha velhíssima crítica - as feministas, essas FEIAS - oooh!! - não mercem ser ouvidas). Só o homem fala, sob a lei do falo, mas ao mesmo tempo TODO MUNDO PERDE.

Porque, com certeza, a solução é inverter
tudo e manter tudo intocado.
(fonte)

TODO MUNDO PERDE o contato direto, imediato, uns com os outros, que se passa no sentido contrário ao mercado abstrato de pontos e sua pirâmide imaginária. TODO MUNDO PERDE portanto o amor, que ignora pontos e abstrações, que é avesso aos papéis e só entende o idioma da abundância, da doação, do ganho mútuo. TODO MUNDO PERDE na medida em que são sexualmente reprimidos pra poderem ocupar papéis de sucesso, perdem seus cus, suas peles, seu potencial orgástico, enquanto a família e a alcatéia masculina invadem o leito de núpcias puxando o homem e a mulher pra longe de seus corpos. TODO MUNDO PERDE na medida em que há também menos sexo acontecendo, uma vez que as mulheres - metade do fucking mundo - não podem trepar senão perdendo pontos. TODO MUNDO PERDE porque somos encurralados até dois sexos, dois gêneros e uma só orientação sexual, e nossa potência de inventar corpos, gêneros e orientações fica desperdiçada. TODO MUNDO PERDE mas a mulher perde especialmente, colocada numa posição inerentemente desconfortável dentro da pirâmide, uma posição duplo-vinculada - onde só ganha perdendo e só perde ganhando. E por isso, pela especificidade do feminino como "outro", como posição propícia à recusa do falo, como posição de invenção, é que eu penso o FEMINISMO como teoria e prática do combate ao patriarcado, essa e não outra palavra. Isso frisando que o feminismo não tá CONTRA os homens, ele tá À FAVOR deles e contra especificamente o falo transcendente / castração-escassez-falta. Cada vez que se liberta uma mulher, se liberta um homem, como diria a sábia Margareth Mead.

E por isso também eu afirmo que só há feminismo radical, não existe feminismo reformista ou moderado. Radical tem sido usado pra dizer "extremo", mas pra mim é aquilo que vai até a raiz (radícula), incide sobre a raiz. E a raiz é o patriarcado e as árvores somos nozes. Qualquer tentativa de "igualdade" dentro do patriarcado pode no máximo redistribuir a falta, trocar as pessoas de posições, até quem sabe fazer com que todos faltem em relação ao falo igualmente, grande vantagem! Patriarcado para todos. Eu vejo sentido em reformismos que busquem atenuar o sofrimento de algumas mulheres, certos desbalanços, mas sinceramente, inserir a mulher no mercado de trabalho, dar a elas o direito de serem objetos de sucesso como os homens - ou mesmo de serem bem tratadas como objetos sexuais - não é a proposta do feminismo.


Como isso tá ficando longo de novo, teremos de terminar numa terceira parte. Tem só mais uns pontinhos a abordar, da relação dos homens com o feminismo, aonde o queer entra na história e, enfim, responder explicitamente as "15 perguntas que as feministas não podem responder", a maioria das quais - se fiz direitim meu trabalho - a essa altura já devem ter ou perdido seu sentido, ou ter sido respondidas. Até breve!

4 comentários:

  1. Meus parabéns pelos textos! Parabéns pela eloquência e, claro, pelas suas (nossas) verdades.
    Estou aguardando o 3º.

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  2. Um argumento interessante a favor da abundância e do acúmulo é que basta um inverno mais rigoroso ou uma seca mais "braba" pra obliterar toda uma sociedade que viva à beira do "mínimo necessário".

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  3. @Daniel Boto fé, o Sahlins inclusive comenta isso. E se me lembro bem do que ele relata, a dádiva e os laços sociais concomitantes meio que iam pro saco no momento onde o bicho pegava...

    Se bem que em matéria de sobrevivência talvez nossa sociedade de escassez & acúmulo não esteja indo tão bem, com superbactérias e risco nuclear e aquecimento global and the like.

    Só corrigindo um detalhe em seu comment, que no meu texto eu relaciono ESCASSEZ - a NOSSA "lei econômica" da escassez, a escassez moderna, capitalista - ao acúmulo, enquanto associo o "mínimo necessário" dos caçadores-coletores à ABUNDÂNCIA (tem se tanto que se joga fora, se destrói, se dá). É o contrário da imagem que fazemos dos caçadores-coletores, de sua suposta "subsistência"...

    Mas isso tudo é meio só tangente ao post, eu só queria importar as idéias de "mercado de abundância" e "mercado de escassez"... também não proponho um "retorno ao paleolítico", e sim que tiremos algumas idéias úteis do estudo desses povos, pra provocar & questionar nossa própria sociedade... e quem sabe então inventar algo diferente.

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  4. @ L. S. Dias: Valeu!! O terceiro já tá no forno... (:

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