sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O Canto da Potência

Recentemente um leitor anônimo me contatou em resposta ao Ensaio sobre a insanidade cotidiana, e o comentário e minha resposta viraram o post Notas para uma Guerrilha Psíquica. Agora, ele postou outro comentário, e eu como de costume me alonguei de novo e decidi tornar a conversa novamente em um post.

Remedios Varo, "Alegoria do Inverno"

(...) Como mencionei, é uma realidade diferente da minha. Sou das ciências exatas, da ordem e da lei (inclusive projetando nanomáquinas de guerra), mas há um centelha que busca um caminho diferente. Isso evoca uma (singela) lembrança de um documentário com aquela experiência do labirinto e dos ratinhos. Observavam que após um tempo, o ratinho já tendo assimilado o caminho correto e o executando com perfeição, começava com um comportamento anormal, procurando um caminho diferente. Era associado a inteligência. Poderia encontrar uma ilha maior de queijo. Sinto-me desta forma. Objetivamente e de forma calculada (gostaria de colocar numa prancheta). Acho que esse comportamento é instintivo. A respeito de objetivo, é interessante(íssimo, na verdade) o sucesso consistindo na falha... pois a liberdade plena não me parece sinônimo de felicidade. Paradoxalmente só encontro um pouco de serenidade quando restrinjo voluntariamente minha liberdade... nós somos "feitos de tristeza devido ao vazio que nos constitui e à liberdade sem limites que nos assusta"? Por hora persigo o poder (e o esforço/estudo/conhecimento que mencionou para mim são facetas dele), principalmente sobre mim - não encontrei (ainda) a finalidade disto... mas parece... sei lá... um caminho.... Quanto a essas drogas, sempre me preocupam o poder de adicção e... flashbacks.....? (...) (Ass: Anônimo)

Oi anônimo, valeu por voltar pra continuar a conversa! Seu comentário me abre muitas coisas pra problematizar. A primeira é que sugiro uma distinção entre poder e potência. Você não é obrigado a aceitar minhas definições, mas ofereço-as porque podem quiçá lhe ser úteis pra pensar! - pra mim foram...
Sei que no uso comum a gente fala como se poder e potência fosse a mesma coisa, mas na hora de pensar politicamente há dois fenômenos diferentes em jogo. Poder é segundo Deleuze "o grau mínimo da potência", e tende ao controle, à restrição, à contenção. Poder é "hetero-regulado", centrado no outro; se realiza apenas através do outro, ao mesmo tempo que reprime, suprime ou diminui o outro: "sou poderosos porque mando e desmando e os outros me obedecem", "olha como sou poderoso, todos admiram minha esposa / carro / roupas / etc". A sede de poder tem sua origem biológica na restrição da potência - quanto mais potente a pessoa é, menos ela precisa dos outros pra sentir-se segura de si.


Um exemplo extremo de instituição que de reprodução de poder é o quartel, fábrica de construir sedentos de poder através da submissão e humilhação. O poder tem outras características que podemos notar, que eu gosto de chamar de suas "leis":
Primeira Lei do Poder: Um poder aplicado objetivamente tende a recair por sobre a própria subjetividade do opressor, e vice versa; Vou repetir pra clarear: o poder que é exercido para fora se reproduz no sentido oposto, oprimindo a própria subjetividade do opressor, e vice versa. Alguém que oprime mulheres fora oprime a potência-mulher em si, alguém que reprime a potência-mulher em si tende a reprimir as mulheres .
Segunda Lei do Poder, o poder tende a se disseminar através de cadeias de comando. O oprimido tende a assumir o papel de opressor em outro contexto - daí surge a escadinha que chamamos "hierarquia". Ex: quartel; trabalhadores amargurados com cargos intermediários de supervisão; pais com seus filhos; a própria criança oprimida, com seus brinquedos. Etc.

Robert Steven Connett, "Ghosts"

Por outro lado, a potência é auto-regulada, tende à expansão, e tem em si a abertura para que o outro seja encontrado e incluído (nem sempre, há também a potência de repelir ou destruir, e isso é parte legítima de tudo).  Sua base é o impulso biológico de expansão, de crescimento, de criação. O poder é também uma potência ("o grau mínimo"...), e com isso quero dizer que mesmo o pior dos sadismos e crueldades do poder costumam ser ainda a potência vital, funcionando em condições degradantes e torcida contra si mesma graças à repressão. Essa teoria pode ser encontrada com mais detalhes em um livro do psicanalista suíço Wilhelm Reich, chamado "A Função do Orgasmo". Escrevi uma resposta a um comentário de um amigo recentemente explicando grosso modo a teoria de Reich:
A impotência [causada pela repressão social] não é (só) uma série de signos gravados em sua cabeça; ela tem uma base na função (ou ciclo) de tensão-carga-descarga-relaxamento do corpo, que é biologicamente inibido por várias de nossas instituições. Essa inibição se dá de forma muito simples: repetindo uma opressão frequentemente, o corpo do oprimido automatiza a reação de defesa (medo), ou a contenção da agressividade ('não responda seu pai!'), ou enfim, de modo geral, você automatiza bloqueios ao fluir biológico do corpo. Esses bloqueios se instalam não só dentro do cérebro, mas também muscularmente, tensões ou relaxamentos crônicos (estagnados) que reduzem nossa potência e funcionam como uma armadura ou couraça dura envolvendo a flexibilidade orgânica. O corpo faz isso segundo sua inteligência biológica, visando a economia;  a automatização da resposta faz com que custe menos energia pro sistema corpo-mente. Porém, logo que você está "livre", ou seja, não tem mais a ameaça do pai / professor / patrão / militar por sobre sua cabeça, você não consegue viver essa liberdade, porque a auto-inibição está lá e fora de seu controle. A incapacidade relativa de tensionar, ou de carregar, ou de descarregar, ou de relaxar cria vários padrões neuróticos que são tentativas de solucionar o desequilíbrio - soluções que podem ser histéricas, sádicas, masoquistas, obsessivas, paranóicas ou, no limite, esquizofrênicas. [ligeiramente editado]
Essa análise do poder e potência vem de Nietzsche (embora eu desvie dele em um ponto ou outro dessa mesma argumentação, cf. A Genealogia da Moral), a Ética de Spinoza (que eu não li, mas absorvi por vias indiretas), o já citado Wilhelm Reich e porfim os filósofos franceses Deleuze & Guattari, que amarram os dois no "Anti-Édipo" e no "Mil Platôs". (não se sinta intimidado pelas referências, coloco elas aqui só pra facilitar caso você ou outrx tenha desejo / tempo /  curiosidade / acesso pra pesquisar).
Quanto a felicidade e liberdade, eu entendo a liberdade positivamente, usando a chave da potência; alegria é o sentimento do aumento ou realização de uma potência; tristeza da contenção ou redução de uma potência.
A necessidade de se restringir ou retrair em si só não é ruim - pode levar a sobrevivência, é uma reação biológica útil (afastar-se de ameaças). O problema é que ela é usada por muitas de nossas instituições sociais pra criar uma automatização da retração ou restrição (tornando-a crônica, estagnada) com fins políticos/sociais, inibindo o nosso fluir biológico mesmo quando o agente estressante não está por perto ameaçando.
Tem também que quando a tensão muscular crônica está instituída, qualquer impulso vital interno que empurre o corpo até ele atritar com a tensão tende a causar angústia - por exemplo, se há uma couraça de tensão na região do peito, a pessoa tende a se angustiar toda vez que sua respiração é excitada e a caixa toráxica se comprime na armadúra de músculos. Essa pessoa achará recursos (conscientes ou inconscientemente) pra inibir a excitação. Ex: muitos casos de ejaculação precoce.
Daí, você fala de poder sobre si. A maior potência acho que a gente adquire através da inclusão, não da repressão (poder). É incluindo todas as nossas facetas, orgãos, estratos, dimensões, permitindo que essas coisas se articulem sem um controle central, sem remeter necessariamente a uma identidade que as transcende, sem tentar controlar de cima pra baixo. A fórmula que aprendi com um par de magos (Hyatt e Duquette) que muito me influenciaram foi: a maior potência vem da entrega (surrender); quem está a todo momento tentando se controlar a bem da verdade é frágil, tende a se desgastar, criar panelas de pressão internas, acaba alienando-se de parte de si e de sua potência.
Por fim, almejo não temer a liberdade plena, se ela significa a "plena satisfação de minhas potências", pois nisso há uma enorme alegria! O que eu temo é sair de minha zona de conforto, isso é, deparar-me com os meus limites biológicos e mentais e enfrentar a angústia de minha própria repressão internalizada. Porém, uma vez vencida a angústia, a liberdade é inebriante! Ela tem sabor de ... naturalidade.



Antigamente eu temia muito me vincular, me envolver (coisa de homem no patriarcado) pois isso "reduziria minha liberdade". Bem pelo contrário! A pior sensação é a de não realizar nada, quando toda realização parece um aprisionamento. Acho que a liberdade inclui os vínculos, inclui uma vinculação que é orgânica; ela "gruda" também; mas um vínculo auto-regulado por cada parte é tão menos pesado que um vínculo hetero-regulado (regulado pelo outro / imposto / auto-imposto). A realização, e a vinculação, extinguem muitos mundos possíveis, mas dá parto a uma série de outros mundos possíveis, e pura possibilidade é apenas fantasia, abstração, ideal - a tirania do ideal sobre o fluir das coisas...

Quanto às drogas: existem riscos, "tudo é perigoso... tudo é divino maravilhoso". É menos perigoso que andar no trânsito todo dia pra trabalhar, eu acho! Porém, esses riscos podem ser minimzados. Idealmente: Primeiro, lendo bastante sobre o que você for consumir; uma fonte em inglês das boas é o erowid.org, com milhares de relatos de usuários, dados científicos, etc, pra tudo quanto é psicoativo. Segundo, escolhendo adequadamente um lugar confortável, de preferência próximo à natureza, pessoas confiáveis (e cujas relações estejam tão limpas quanto possível) pra acompanhar, terceiro, uma hora onde você esteja tranquilo e de mente aberta pra experimentar e se entregar. Porfim, escolhendo a substância certa. Eu só posso te recomendar o consumo da ayahuasca (daime) (pois outras substâncias como os cogumelos psylocybe (da bosta da vaca) são ilegais. Se você tem acesso a algum grupo de ayahuasca bom e não-dogmático que realize rituais próximo a você, recomendo que experimente algum dia. Os psiquedélicos de forma geral (LSD, ayahuasca e cogumelo são os principais) não são quimicamente viciantes, e apenas muito marginalmente 'psicologicamente viciantes' (QUALQUER coisa pode ser psicologicamente viciante, eu não me preocuparia com esse risco). Uma das substâncias ativas da ayahuasca, o DMT, é inclusive produzido por seu cérebro também, naturalmente; supõe-se que tenha relação com os sonhos e experiências místicas.

Existe todo um papo de "surtos" e dessas substâncias causarem psicoses, mas é uma discussão muito difícil de se ter, a começar por definir surto e psicose. Mas uma coisa é provada: usuários dessas substâncias tem a mesma proporção de 'psicóticos' (segundo padrões clínico-psiquiátricos) do que não usuários, portanto se a substância age de alguma forma nesses casos tristes, é apenas como um catalizador não-específico, ou seja, poderia ter sido qualquer coisa.
Porfim, essa história de flashback é histeria midiática em minha opinião, misturando um monte de coisas diferentes no mesmo balaio. Pessoas que consomem SSRIs (tipo de antidepressivos) podem desenvolver uma "síndrome de flashback" temporária após consumo de algumas substâncias (LSD era o caso que li), pois os psiquedélicos geralmente causam um influxo enorme de serotonina no cérebro, e os SSRIs impedem que essa serotonina seja naturalmente tirada de circulação (é assim que inibem a depressão). De resto, ou isso não acontece com uma frequência significativa, ou só acontece em casos de abusos extremos.

Luke Brown, "Salvia" (detalhe)

Porfim, depois de tanto falar dos riscos, eu tenho de fazer um relato sincero dos benefícios, em especial da ayahuasca: é uma experiência muito profunda, psicológica, emocional, auto-analítica, espiritual / existencial / filosófica e (pra mim) mágica que eu só consigo equiparar à prática intensiva de vipassana ou meditação análoga. Quando durante a experiência eu sofro, tenho medo, ou choro, geralmente é por encarar aspectos dolorosos ou indesejados de minha própria vida, ou por emoções antigas e reprimidas virem à tona; e paro de sofrer tão logo paro de resistir e me entrego. No limite, a ayahuasca tem um mecanismo interno de "expurgo"; você vomita, ou tem diarréia, e isso fornece um alívio intenso que tira você da peia (experiência sofrida, caracterizada pela resistência a enxergar algo ou deixar o corpo fluir) e te abre a possibilidade de olhar praquilo tudo de um ponto de vista muito mais leve e tranquilo. Outras substâncias ativas da ayahuasca, a harmina e a harmalina, são antidepressivos (do tipo IMAO, pouco usado hoje em dia por implicar em restrições de dieta) que ajudam a encarar com tranquilidade a experiência de irrupção do inconsciente causada principalmente pelo DMT. Todas as vezes que vou tomar ayahuasca, tenho medo...! Das experiências difíceis, do sofrimento de algumas peias. No entanto, não tem UMA VEZ SEQUER em que eu tenha bebido ayahuasca e tenha me arrependido depois. E a cada vez mais a experiência se refina, você aprende a lidar melhor e começa a utilizá-la de formas cada vez mais precisas e sutis...
Se ainda assim não se sentir confortável recorrendo aos psiquedélicos, uma alternativa mais segura pra chegar a fim similar (e mais demorada...) é o vipassana (ou algumas outras meditações).

Abraços!

ps. meu e-mail é iagopontope no gmail.
pps. vi que não falei nada sobre o Fracasso. Deleuze diz que o "fracasso faz parte do plano" - é que o plano de experimentação "cresce e decresce com as dimensões que adquire a cada vez". Ou seja, quando fracassa, perde dimensões, porém não há nenhuma falta. Ex: qualquer bom cientista sabe que provar uma hipótese falsa ou verdadeira é igualmente valioso em termos de experimentação.

Um comentário:

  1. Olá Harlequinade, tudo bom?

    Achei muito interessante esse texto. Gostei também do seu post falando sobre Vipassana e suas discordâncias sobre o método como ela é ensinada.

    Eu acabei de fazer o curso de 10 dias esse mês e também tive várias questões. Porém, por outro lado, também senti a efetividade da técnica. Confesso que depois da leitura do seu post e, com todas essas questões em mente, me desanimei um pouco em seguir com a prática diária.

    Você se importaria em dividir um pouco mais da sua experiência com essa técnica e explicar também um pouco melhor seu comentário final: "Se ainda assim não se sentir confortável recorrendo aos psiquedélicos, uma alternativa mais segura pra chegar a fim similar (e mais demorada...) é o Vipassana (ou algumas outras meditações)."

    Qual é a relação que você vê entre essas dua experiências ( Vipassana e Psicoativos)? Também sou um cara que têm curiosidade em experimentar psicoativos mas muito medo.

    Bom, me desculpe por tantas perguntas mas eh que lendo esses teus dois textos, senti que você podia me ajudar com essas questões.

    Muito obrigado pelo conhecimento compartilhado!

    Abraço

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