terça-feira, 30 de junho de 2015

Máquinas Invisíveis

art by Larry Carlson

Você pode ouvir o barulho das máquinas trabalhando? Isso que a gente chama de realidade diurna me parece mais um frenético sonambulismo, e cada passo que se desdobra na matéria são cem mil passos do Outro Lado da tela. A vida humana surge numa descarga elétrica, a colisão do cometa-esperma e o planeta-óvulo, BOOOOM! - aí vem a montanha russa neste circo louco & quem tem chance de parar e se perguntar "pra onde eu tô indo" geralmente adquire um mínimo de perspectiva após vá lá duas décadas. Enquanto isso, nosso caminho se traça entre os trancos e esbarrões da mistura de nosso singulares impulsos vitais, os condicionamentos sociais a que somos submetidos e os acidentes da vida.


Hoje em dia se tornou muito comum tratar esse singular impulso vital sob a égide da "genética", o que as vezes parece explicar mais do que realmente explica. A ciência "jornalística" costuma invocar a genética para reduzir uma questão filosófica rica a um materialismo ingênuo. Certo, há um código extremamente complexo (pois não se resume a genes isolados, e sim às suas infinitas interações e dobras) que conduz a montagem e manutenção de todo nosso aparato biológico. Há portanto uma espécie de código ou inteligência se passando nos entrelaces de filamentos muito finos e complexos de moléculas orgânicas. (1)

A vida orgânica é esse fluxo de informação que vai se moldando aos modos e acidentes da natureza, bilhão de anos entra, bilhão de anos sai. Que a Vida funcione como uma inteligência tateando às cegas pra encontrar e se adaptar às leis (automáticas) da matéria (2); eis aí o primeiro sonambulismo.


artista: desconhecido

Após longa experimentação, a Vida desenvolveu seres extremamente complexos, multicelulares. Agora algumas células coordenam as outras células, e surge uma nova camada de sonambulismo: as células coordenadoras precisam filtrar as informações para serem capazes de fazer decisão, algumas informações recebem a prioridade, outros são relativamente invisibilizados no conjunto. Ainda existem seres unicelulares, claro, e eles se adaptam também realizando seu impulso vital segundo os nichos que se abrem por acidente no conjunto. Pois a Natureza é bem um vale-tudo, um jogo da inteligência vital (as múltiplas dobras e curvas de proteína) com ela mesma, onde há a hereditariedade e a "árvore das espécies" mas só até certo ponto, pois há (como a biologia vem desvendado nas últimas décadas) também os vírus sambando com o código genético entre todo tipo de criatura, e espécies hibridizando-se umas com as outras pelo esperma lançado a esmo no mar. Os limites entre quem é um, e quem é o outro, são vazados em todos os níveis, os níveis mesmo meras membranas que bloqueiam certos elementos e deixam outros passar. Corrijam-me os biólogos se eu tiver sido iludido pela biologia de ensino médio (e a jornalística), mas em cada uma de nossas células há uma mitocôndria, que de início era apenas um outro sujeito monocelular que veio chegado, chegado, até que virou um orgão da casa. E nossos intestinos só funcionam porque servem de lar à uma série de criaturas que, a despeito de nossa distância genética, pra todos os efeitos, posso considerar como sendo parte de mim.

O meu ponto, aqui, é que a história da vida é uma dança onde os primordiais agentes são arranjos proteicos inteligentes em fluxo, padrões tornados materiais através da interação com os modos da natureza. O sistema nervoso, que re-elabora a monada celular em um outro plano, surfa na onda da inteligência celular, é apenas sua crista.

E mesmo na Crista surge também um terceiro nível de sonambulismo que tem efeitos especiais no caso dos seres humanos, aquele da ignorância de si, causada pelas reações entre o impulso vital de cada um aos condicionamentos e também acidentes da vida. Quando nascemos temos toda a energia móvel e criativa acesa em nós como um foguete. A vida e nossas escolhas vão minando essa potência e pureza, e apenas alguns conseguem conservá-la para vida adulta e além. Os condicionamentos sociais repressivos são os principais culpados por esse massacre da Vida Viva, tornando a vítima em algoz de geração a geração. Para nós, que buscamos tomar as rédeas da própria vida, isso frequentemente se parece com ser sufocado e levado pela torrente, e nos momentos que a cabeça sai pra fora, ufa!, um momento onde se contempla a vida, a morte, o sentido, o amor! - puxar todo o ar que puder sugar, como um náufrago que se agarra a qualquer coisa, sabendo que amanhã pode trazer outro torvelinho de sonambulismo ou mais uma parte do cenário desabando.


art by Larry Carlson

Adentramos a vida num impulso cego que nos vem do âmago! tão brevemente amamos, envelhecemos, e morremos. Por detrás de nós a eternidade, insistindo a se repetir; pela frente um absoluto mistério, insistindo em nos eludir. A única certeza é de que, por detrás de todas as telas, somos todos um mesmo universo sonâmbulo tateando em meio a vislumbres, e o desvario - deslumbre - desvanecimento - frente ao Rigor Absoluto do Céu Estrelado em toda sua Majestade & Suas Jóias. Fúria cintilante & serena, eterno baile de flamas, o corpo Nu da Nossa Senhora das Estrelas.

Me gasto em palavras pra acessar um estremecimento que assola meu íntimo desde criança, e que certamente não é só meu. Para não ficar no clichê, e inutilizar esse deslumbre, é preciso desenrolá-lo em palavras. Aqui a gente abandona a objetividade da vida terrena e coisas observáveis, e arrisca um lugar entre as estrelas. Aqui é preciso sonhar consciente, fazer mitos, e desdobrar essa pequena mas poderosa sensação em algo que nos favoreça na caminhada.

Escutemos então aos antigos, ceticamente se necessário, mas os escutemos, eles que por milênios e com grande consideração deram ouvido às estrelas. De partida é importante frisar que a noção de hereditariedade e da influência dos ancestrais (espiritual, cultural e sanguínea) é bastante antiga e difundida na humanidade. Dessas, a genética aborda apenas a questão sanguínea (e talvez insinuações - na genética - de fatores de ordem acidental, espiritual e cultural, campos de pesquisa que considero férteis e me parecem pouco aproveitados). Em se tratando da singularidade do impulso vital de cada um, a noção antiga é de que a posição dos planetas frente às estrelas reflete a totalidade do seu universo, do seu caminho, incluindo aí o impulso vital original, e os acidentes e condições às quais ele tende a ser submetido.


O que significa dizer que as estrelas e planetas (ie. o universo todo) encontra-se refletido em seu nascimento? Que você contém um universo em si. Ou melhor, a sua singularidade, frente a todo o universo, é infinitamente diferente de todas as outras, até o infinitesimal, conforme os infinitos elementos do universo estão cada um numa relação singular contigo. Uma forma de entender isso é através da matemática. Cada número é singular pois se relaciona com a infinidade de todos os outros números de uma forma que é só dele. Por exemplo, alguns números são divisíveis por alguns, e não por outros. Alguns são primos. E no entanto, cada número é composto apenas de uma infinidade de outros números, virtualmente. Na cultura védica há a noção da "Teia de Indra", uma rede de esferas reflexivas onde cada uma está ligada a todas e reflete a todas, ao infinito.

O que estou dizendo é que existe uma "textura" abstrata na matemática, ou seja, na própria lógica ou no pensamento. Efetivamente, a inteligência viva, para se adaptar aos modos do mundo, precisa construir uma textura própria, que seja adequada à sua posição singular frente ao todo (seu lugar, seu tempo, seus corpos, processos etc), que permita que aquele corpo componha com os outros corpos segundo as afinidades estruturais ou potenciais de cada um. Talvez alguns se incomodem com a linguagem abstrata aqui, é enfim uma forma complicada de falar coisas simples, mas é precisamente necessário abstrair aqui, subir bem alto para pegar ar.

capa de album do Chemical Brothers. "We are the night"

Nascemos sob uma sina. Parte vem do sangue, cultura, acaso ou planetas e estrelas, acidentes da vida, e escolhas que a gente faz. É um bocado difícil amarrar isso tudo, e muitos nem mesmo tentam, guiados sabe-se lá por o que a viver uma vida de falsidade consigo mesmos. E esses signos, essas estrelas todas te rodeavam em seu constante cintilar, como uma fotografia do seu primeiro sopro, quando o ar entrou em seus pulmões e você foi iniciado nesse estranho circo que se chama Terra. O que é ter uma sina? Você comete o mesmo erro dez, vinte, trinta anos. Talvez aprenda algo, talvez não. É possível mudar? Como faz para mudar? Onde encontro a minha bússola? O que norteia a minha vida? O primeiro passo é olhar ao redor, pra dentro primeiro, então pra fora e pra trás, e daí seguem-se os trampolins da mudança e a gente acha o futuro. Um mapa astral não é um dicionário de tipos onde você se enquadra. Um mapa astral é um universo inteiro, um enigma pra se contemplar a vida toda, um enigma que se contempla vivendo. É um conjunto de mitos que desenha as coordenadas segundo a chama que se acendeu em seu primeiro sopro. Um Mito não serve pra explicar, e ser explicado, como quem prega uma borboleta na parede. Um mito serve sim para Ocultar o Invisível. E o Invisível não é visto precisamente por ser excessivamente visível, ubíquo, onipresente. A Pedra Filosofal dos Alquimistas, sobre a qual vivemos e morremos, achando que ela é poeira, coisa nenhuma, enquanto ela é a única coisa que importa.

A vida, medida pelo céu estrelado, defronte a eternidade, é infinitamente pequena!, e ainda assim, com isso, e em sua própria pequenez, ela ganha as dimensões da própria eternidade.


O dilema do Ego se esfacela. O Eu é um Outro, órbitas e estrelas vagando pelo espaço, máquina cósmica. E a vida segue por aqui, fluindo por entre as brechas das Máquinas Invisíveis, ela que é a crista da onda, e a inteligência cerebral, crista da crista da onda. E mais acima ali na crista da crista da crista da onda, no absoluto pico (e nos mais fundos vales...) dessa dança louca pelo tempo, a Terra e as Estrelas se interseccionam. Uma encruzilhada & toda encruzilhada é um local de Poder. Esse corpo vivo e pensante é um local de poder, capaz de servir de ponte pra uma infinidade de agências imateriais (um céu estrelado de potências) dentro do espaço e do tempo diurno. Tudo se reune e converge nessa intersecção dessas forças em Vórtice que é o AGORA. E no AGORA nós somos um espaço de disjunção, de abertura. Podemos organizar o agora em complexos ritmos de adiamento e adiantamento, que são a própria estrutura básica que possibilita a liguagem. Nas dobras e tramas dos adiamentos e adiantamentos, surgem padrões de inteligência não distintos (em abstrato) daqueles nos filamentos de DNA. Padrões de funcionamento habituado que são produtivos. Outros que são limitantes ou cancerígenos.

Ultrapassando as salvaguardas fornecidas pelos espíritos desde sempre, passamos a usar essa disjunção para plasmar na Terra todo tipo de síntese estranha, sem a menor compreensão de como aquela invenção irá coexistir com a biosfera que o envolve. Isto é um abuso terrível de nossa capacidade, digamos, "XAMÂNICA", de dar forma física ao que de outra forma só é possível em abstrato. A mesma coisa vale pra indústria cultural, diga-se de passagem, criando ritos e mitos com intenções escusas e sem nenhuma preocupação com os danos causados por esses "entes simbólicos" com o meio em que eles existem. Então, a terra é um lugar em guerra, e que isso sirva como mais um parâmetro para distinguir entre as várias linhagens ditas espirituais; quais conduzem a um amortecimento e pacificação aproblemática, as que reconhecem a guerra e nela se inserem de alguma forma, e aqui é possível tomar lados. (3) Novamente, tudo isso em abstrato, mas também demasiado prático, pois são em ações (e "inações") aqui e agora (e sua relativa sinceridade, presença vital) que esse abstrato se põe à teste, quais são os padrões inteligentes que norteiam a minha vida, em quais poços eu posso buscar para beber da água pura e cristalina que é capaz de refletir o meu próprio centro.

O Amor é a Lei, o Amor sob a Vontade.

arte por Jean Pierre Roy


(1) Neste tema só tenho a recomendar o material do Blogos, em inglês, onde se correlacionam minuciosamente os símbolos herméticos com o passo-a-passo concreto do funcionamento genético.
(2) e consequentemente às outras Vidas, pois (aqui acompanho Bergson), a Vida é uma virtualidade que só se atualiza se diferenciando de si mesma.
(3) Minhas experiências espirituais, em especial na ayahuasca, são sempre acompanhadas de um senso enorme de urgência, pois a vida é um espetáculo em chamas. O sagrado, efetivamente, é a energia em movimento, e nesse momento histórico em específico isso implica em "liberação através do fogo".

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