quinta-feira, 8 de outubro de 2015

E agora que a revolta é pop?



É possível até ter saudades de 2012. Antes da dita "Primavera Brasileira", vivíamos um cenário aparentemente simples. A maioria omissa mantinha o silêncio; uma minoria de fascistas clamava a volta da ditadura, e uma minoria de esquerdistas radicais clamava (como sempre) por revolução. A maioria omissa, claro, favorecia a manutenção do status quo, que desde a primeira posse governamental do PT significava barganha política com os coronéis em troca de avanços sociais-democráticos - o empresariado estava feliz, os ruralistas estavam felizes, os evangélicos em franca ascensão junto ao poder de consumo da classe C. Só um bando pequeno de empresários ligados aos tucanos talvez reclamasse, mas sua voz não importava enquanto o Brasil crescia a 5% ao ano.
Quem ia à rua, então, eram apenas os movimentos identitários e miscelânea radical de esquerda. Incitar a revolta parecia a melhor opção; era preciso acordar as pessoas do transe induzido pelos produtos baratos chineses, e alertá-los de que o mundo estava sendo destroçado, de que ainda se matava pretos na favela e índios na roça, de que as mulheres ainda não podiam decidir por seus próprios corpos, de que a renda era distribuída de forma insustentavelmente desigual.

2013 viu as ruas serem tomadas de gente, em especial a velha mas também a nova classe média. Ícones da luta anti-autoritária como as máscaras de Guy Fawkes do V de Vingança (elas mesmas já uma re-apropriação libertária de uma figura histórica que era monarquista fanático, obra do quadrinista Alan Moore) se tornaram um lugar comum, sobreposto de maneira irrefletida à estética dos caras pintadas e a bandeiras do Brasil. Se os Brasileiros já nutriam um desgosto pela classe política, a partir daí a coisa tomou rumos bastante violentos. Muitos partiram pra equacionar políticos com PT com comunismo, inflando dia à dia as fileiras do radicalismo de direita, do "pau nesses vagabundos". A mídia de direita bombardeou o PT mês a mês por uma década, e infelizmente dizer "mídia de direita" no Brasil significa antes de tudo revista de maior circulação nacional e a maior emissora de TV. O alcance do poder dessa mídia não pode ser esquecido por um instante; nem dos interesses que a pautam; pois no fundamento do poder estão as armas, e no nosso caso, isso significa a efetiva obediência aos interesses dos Estados Unidos. Que o PT flerte em se aproximar de Irã, Rússia e outros BRICS, é de arrepiar os cabelos do Tio Sam, mas lembremos que o PT só foi capaz de assumir o poder pacificamente e lá passar uma década porque topou, expressamente, manter a estrutura intocada. Governo do Brasil é Washington até terceira ordem. E movimentos de rua, de massa, o tipo de instabilidade que eles geram, atrai a participação de cascudos como a CIA - em especial aqui, dentro do cercadinho estadunidense. O que quero dizer é que não existem razões pra duvidar que existe ação organizada pela Alta Grana Internacional e pelas Redes de Controle e Poder Imperiais para derrubar o PT. A oposição ao PT não é exatamente o PSDB, ou, o PSDB é uma fachada pra esses interesses. (1)

Ainda assim, a despeito da ladainha repetida todo dia nos rádios e TVs, a maioria das pessoas continua sabendo que o PT é na pior das hipóteses tão ruim quanto qualquer outro partido. Aliás o crescimento recente do poder de consumo comprou também a complacência de muitas pessoas, quiçá até da maioria  - pobre e classe média baixa - e me parece também que essa maioria sabe bem (mesmo que um saber instintivo inarticulado) que a ditadura não foi nenhuma maravilha, que não há paraíso perdido ali atrás pro qual possamos retornar.


Até aqui me contentei em recontar o óbvio. Agora existe uma direita no Brasil, e ela está organizada e vai às ruas. Eles estão revoltados com a corrupção, com a "imoralidade", mas estão dispostos a promover justiçamento fascista e até saque e quebra quebra se for por brancos "restaurarando a ordem". Um amigo das antigas sempre me disse que era melhor a direita assim, aparecendo, fora da toca, do que como antes era o caso nos anos 90, onde a direita escondia num silêncio omisso, num pseudo-consenso arbitrário e televisivo. Hei de concordar até certo ponto (2), até porque aparecer e se organizar trás à tona as linhas de fissura internas, as diferenças que passavam batidas quando a melhor estratégia era fingir de "pano de fundo" inalterável se tornam de súbito visíveis, e neoliberais, conservadores, monarquistas, fascistas começam também a brigar entre si. Isso está acontecendo e, assim como a dissolução da esquerda até o último neutrino manifestou-se também como um tedioso e constante espetáculo online. O que a direita vive é espelho do que acometeu a esquerda durante toda sua década de (relativa) glória e derrocada final com a ascensão e queda do PT.

A esquerda, ou digamos, aquele campo difuso de pessoas buscando desmontar ou substituir de alguma forma o atual sistema com base numa visão de justiça ou liberdade geral, é feita de faccionalismos e rachas desde seus primeiros dias (mais ainda que a direita, que pelo menos consegue estabelecer como consenso a manutenção mais próxima possível da estrutura, no máximo discordando sobre quem deve compor a elite), mas vivenciou em 2013 um raro momento de simbiose. As ruas eram da esquerda, e muitos da esquerda se exasperaram ao receber a inundação (sim, insuportável) de coxinhas nas ruas. O que poderia ser uma vitória ou uma oportunidade pra expandir se converteu rapidamente numa luta encarnecida meramente pra se manter na rua, agora que os agitadores de direita conseguem jogar brutucus contra os "partidos" ou mesmo "comunistas" "bichas" "feministas" etc, de forma indiscriminada. A revolta que tentamos incitar tornou-se num passe de mágica em violência contra nós mesmos!

(esse clipe, como a maioria dos clipes do Chemical Brothers, vale muito a pena)

As discussões que realmente tentamos propor - de classa, raça, gênero - se disseminaram como nunca durante a década de rede social e (relativa) glória da esquerda. No saldo do cabo de guerra com a grande mídia, houveram alguns resultados realmente sólidos (como o casamento gay), porém se tudo redundou em Bolsonaro, Feliciano, Kátia Abreu & cia mandando no congresso, e a esquerda partidária em frangalhos (totalmente desacreditada), nossas pequenas vitórias podem nem sequer se revelar duradouras.

Porém o lado chic da revolta, o glamour da revolução de video-clip, a romantização do "povo" hollywoodiana (imposta ao V de Vingança de um Alan Moore que tem sim todo direito de estar emputecido), a onda da ocupação, até o desde-início raso e brega "mais amor por favor" - isso sim chegou às pessoas através da legião de designers e produtores culturais (pós)moderníssimos iniciados nas vanguardas européias e da influência que passaram a exercer, em especial através das redes sociais e das cenas boêmias das grandes cidades, mas também desde os anos 60 com a penetração maciça de artistas influenciados por idéias contraculturais ou esquerdo-liberais nos ranks da indústria cultural. Um sentimento de revolta e romantismo da revolta difuso, desinformado, que se mistura à rejeição total aos partidos e a uma afobação ufanista. Em suma, a receita pra uma reação fascista da pesada, pegando tudo aquilo que de alguma forma semeamos (falo "nós" todos aqueles que buscaram radicalmente por alternativas) e nos devolvendo como que animados pela magia diabólica do escapismo romântico e de jogar a culpa no outro.

O verdadeiro radicalismo libertário, contudo, não chegou à maioria das pessoas. Creio que são os jovens os mais afetados pelos ideais libertários (começando já a adolescência num mundo onde mal ou bem existem alternativas à televisão no que tange a informação), e eu posso ver com os meus olhos da cara que há boas sementes aí plantadas. Porém não guardo muitas esperanças em relação a qualquer movimento de massa num futuro próximo. Acredito que quão mais radicais são os valores, maior é responsa necessária pra executá-los e colocá-los em prática. Responsa essa que a esquerda, em sua maioria esmagadora não tem, nem nunca teve.

Primeiramente, os partidinhos radicais e idealistas funcionam na prática em um constante estado de guerra contra todos outros partidos movimentos e ideologias, nunca abandonando as vistas de seu objetivo concreto que é catar & cooptar. São um misto de intelectuais crentes na "Única Teoria Certa" e demagogos em gestação, mestres da indução de revoltas superficiais e entusiasmos baratos. Eu vi com esses olhos de minha cara essas pessoas bradando nas assembléias populares de 2013, larvinhas dos populistas de amanhã. Que alternativa isso configura ao que tá posto? Se estão mesmo dispostos a tomar armas pela Teoria e pela Demagogia, são tão ruins quanto os poderes que estão postos.

No outro extremo da esquerda, os anarquistas (que finalmente atingiram a fama e a perseguição estatal graças aos blocos pretos em 2013) que lutam contra um sistema injusto propondo, como alternativa, um não-sistema bastante desconectado da realidade objetiva de como funciona o poder e de sua inércia. Os anarquistas miram alto, e bem mirado, ao recusar o poder e o estado como métodos pra organizar uma sociedade justa e livre; mas não percebem que a realização de seu paraíso na Terra demandaria um tipo de ser humano são e centrado, flexível e capaz de enxergar além do próprio umbigo, do tipo que está bem em falta fazem bem alguns milênios. Enquanto isso, na maioria dos casos não conseguem organizar nem mesmo um coletivo ou uma pequena casa coletiva de uma forma funcional, bonita e realmente autônoma (por mais que tenham boa intenção!)

Que os Zapatistas em Chiapas (a garota dos olhos dos anarquistas, e, confesso, também dos meus) consigam uma autogestão tão límpida e duradoura, a despeito de todas as dificuldades, é um testemunho de como existem fatores inconscientes, de origem ancestral, paleo-histórica, que tornam tal ou qual arranjo social possível pra um dado grupo. E nós - herdeiros da escravidão e do genocídio, urbanizados e forçosamente desenraizados, nós pios cristãos a brotar como ervas daninhas em continentes devastados & desecrados pela arrogância européia (3) - nós, separados da capacidade de produzir a própria vida (coletivamente) por mil camadas de mediação tecnológica, apegos a pequenos consolos com máquinas venenosas e radioativas, ambulando como zumbis pelos labirintos, largamente inconscientes, sem lembrar nem mesmo do próprio corpo, as couraças de medo e tensão que o limitam, toda a insensibilidade e ao mesmo tempo FALANDO, uma proliferação infinita de falas e teorias vãs, totalmente alheias às próprias demandas emocionais originais, totalmente alheias ao próprio corpo, alheias ao colapso ambiental ÓBVIO que nos cerca, alheias ao Mundo Invisível  cujos rumos ditam o começo e o fim de tudo... Quem somos nós pra conseguir fazer "vanguarda" em matéria de "alternativa"? NÓS NÃO SOMOS NADA, e se quisermos ajudar, o primeiro passo é pra trás, e pra dentro, não pra fora, porque senão seremos apenas mais cegos tentando guiar os cegos.


E assim se vão os últimos amigos que eu tinha

Enfim, enquanto a direita ascende, toma espaço nas vistas e nos cargos da superestrutura, e começa a rachar, a esquerda desce à terra, se dissolve até o último neutrino de faccionalismo e solvência crítica, se torna parte do "pano de fundo" pelos capilares das novas redes. Esses movimentos são reais, fluxos e refluxos da opinião (e de grana e poder entre elites) pelas décadas. Claro que no nível mais profundo a estrutura é e sempre foi verdadeiramente de direita (isto é, as armas e o dinheiro ainda estão nas mãos de basicamente as mesmas elites) e o mundo ainda não tem futuro. E nesse sentido, a alternativa é entre a máquina cega que está a destruir a vida (através dos seres humanos e sua perspectiva demasiado limitada), e do outro lado os demais seres da biosfera necessários para que possamos comer, respirar e beber água. O cenário se confunde mais ainda, e quão  mais perto chegamos do problema atual e real que temos pra lidar mais longe vamos das definições de "esquerda" e "direita" que herdamos da revolução francesa! Não se trata de abrir mão de teorias, isso enfim é impossível. O que apresento aqui é ademais só mais uma teoria, "theoria" no sentido antigo de visão, experiência visionária. É preciso pensar fora da caixa, ousar traçar uma linha de raciocínio que amarra a modernidade à tradição (que lhe deu fruto, filha rebelde que é a modernidade), amarrar o ser humano na biosfera da qual ele faz parte, amarrar o cotidiano (quase) confortável das classes média e alta urbanas à escravidão e genocídio que o sustentam ainda hoje, amarrar a política das ruas à política interna do mundo subjetivo de cada um, amarrar os sonhos utópicos dos radicais políticos à suas raízes espirituais, na magia e na libertação energética-emocional a nível do corpo, amarrar a consciência objetiva, racional/patriarcal do dia às insinuações elípticas dos sonhos e do mundo dito "feminino" que relegamos ao esquecimento, um mundo onde imaginação e sentimento são reconhecidos como as forças vivas que são, e aí abrir a possibilidade de abordá-los nos seus próprios termos, colocar o sonho pra comunicar em assembléia pública. Ufa! Eis aí o germen de minha theoria, a visão que tenho de um programa - não um programa de futuro, pois não aconselho a esperança - não há futuro pra babilônia! - mas um programa pra vivermos esse colapso da maneira mais íntegra, viva, soberana de si que formos capazes, sim, luzes ainda, um céu estrelado a luzir pelo período de densas trevas que nos aguardam. Força.


(1) Fun facts sobre a CIA (e não é teoria da conspiração, é história): -ela é uma rede de espionagem simplesmente importada do nazismo pelos americanos ao fim da segunda guerra; -ela financia grupos de extrema direita e intervêm na mídia quando se trata de impor ou manter a Lex Americana num lugar.
(2) Chegou recentemente a meu conhecimento de uma recente invasão por um masculinista agressor em um evento feminista na UFMG, e que depois posteriormente veio a tona haver um grupo organizado mapeando as feministas na intenção de perseguí-las. Uma coisa é "a direita aparecendo" enquanto "cidadãos tomando opinião por tal ou qual assunto público", outra coisa é quando grupos fascistas começam a pipocar e perseguir todo mundo que é diferente ou marginal.
(3) Aqui me vem em mente aqui o livro Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem - de Michel Taussig - sobre os horrores do ciclo da borracha na amazônia peruviana, nosso próprio "Coração das Trevas".

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