sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

As Razões Profundas da Permanência do Poder

- ou, porque somos tão apegados aos nossos grilhões?

Arte por Pawel Kuczynski

Sejam bem-vindos à pós-modernidade. As Bonecas Trouxas fazem as vezes do Gorila Chorão (de Alan Moore), quando a merda do colapso ecológico atinge o ventilador da consciência pública e o niilismo atinge proporções pop. Uma nova geração de filósofos niilistas conversa pelo Facebook em tweet-aforismos:


Caso encerrado? "Que se exploda a moral". Nada verdadeiramente tem sentido... (Ou não! Recuar amedrontados ante a ameaça de perder as referências familiares, voltando os olhos à TV ou aos Gifs como um deus de bolso a prover doce esquecimento). Fácil falar, difícil é vivê-lo na prática. Afinal se por um lado eu piso em formigas como quem não vê nada, quando eu perco um ente querido pra morte , meu coração clama por justiça! do! universo! E o Universo, esse bastardo, mantém o silêncio. Entre o profundo não-se-importar da natureza, e as demandas sentimentais e filosóficas da vida humana, há uma disjunção. A verdade é que aqui questão começou a se colocar; e no espaço que se abre, é finalmente possível pensar a Ética.

A diferença da Ética pra Moral é a seguinte: Moral é quando Deus dá dez mandamentos pra obedecer sem questionar, bem e mau, homem e mulher - codificando os limites estritos pro encaixe entre sociedade e universo. Já a Ética se faz pela experiência, é um projeto em aberto, construindo-se pelos encontros de um corpo com seus desdobramentos no mundo. E um encontro pode tanto acarretar paixões alegres (afetos que magnificam a potência) como as paixões tristes (afetos que reduzem a potência). Os ganhos e perdas da Potência são ganho e perda da vida, e portanto a questão Ética é A QUESTÃO do viver: Em quais planos estou pleno, e em quantos estou faltoso, mediocre, reduzido pelo medo? Ou, em outras palavras: como podemos distinguir poder de potência?

Quero dizer, poder é controle, um tipo de paixão triste (mas sempre na moda), o "grau mínimo" da potência. Através de uma educação pelo medo, nosso fluir biológico passa a se limitar a idealizações como um "nome próprio" e o "senso de identidade" - e surge aí o mal-falado "ego", que é nada mais nada menos que um meio que a potência vital de cada um encontra pra fazer média com as demandas insanas, porém reais, de um mundo insano.

Para esse Eu neurótico, a mudança é uma ameaça que precisa ser afastada ou barrada, pois estamos encerrados na segurança de uma identidade cujas bases formaram-se nos primeiros anos de vida. Para que o fluir vital se mantenha nos confins da identidade é preciso manter o controle - e o Orgasmo, esse sublime descontrole do corpo, é reduzido a uma descarga tensa e insatisfatória. Por consequência acumulamos tensão, tornados escravos de nossas próprias armaduras, insensíveis à Vida dentro e fora, e por fim, incapazes de gozar, morremos frustrados (morte e orgasmo tem muito em comum, como bem se sabe; existe uma correlação estrita entre a forma potente ou impotente em que vivemos, criamos, gozamos e morremos).



Na ótica da neurose parece só existir o poder - & além de suas fronteiras, o caos e dissolução no indiferenciado (marionetes com as quais a Moral nos ameaça caso percamos o auto-controle). Para um claro e comum exemplo deste espantalho, basta fitar aqueles apegados aos papéis tradicionais de gênero - cujo medo é que, se pararmos de forçar as pessoas violentamente a acatarem seu papel tradicional, vamos terminar "todos iguais" e vai morrer todo desejo & tesão. (Na verdade, quando as pessoas simplesmente podem ser elas mesmas sem medo, elas se tornam ainda mais vivas e belas)

E quem é que ganha com o nosso épico esforço pra nos mantermos nos cercadinhos morais? Acima de tudo, os Donos do mundo - aqueles de quem todos nós somos apenas servos! - um grupo difícil de se delimitar, mas não impossível quando temos em conta que metade de toda a grana do planeta está nas mãos de 80 pessoas.

Bater, morder, matar, "é errado", dizem os moralistas. Enquanto submetem o planeta inteiro, os animais, vegetais miríade de seres da biosfera, e também os humanos sujeitados, a um tipo de sobre-vida em servidão que mata toda a beleza da vida, e vem rapidamente erodindo as condições básicas da vida na Terra!

O pior é que esse massacre da potência pelo poder passa desapercebido todos os dias. Somos em maioria apenas cúmplices passivos. Mas nas pequenas atitudes, demonstramos que na verdade não somos tão diferentes de nossos feitores, enfim. O poder é tão parte de nós, tão íntimo desde os jogos da infância, que romper (que seja) com a silenciosa cumplicidade coletiva é o suficiente pra trazer uma enorme dor.

Esse desespero frente ao desconhecido, frente à mudança e anormalidade, é mais uma prova da insanidade do que passa por "normal" hoje em dia. Pense bem: agora, nesse momento, precisamos mais do que nunca do desconhecido; as velhas formas de pensar e de agir nos trouxeram a um ponto tal onde estamos triturando todo um planeta, e com isso, minando as bases de nossa própria existência e de nossos filhos. Mas "a vida continua", e todo mundo, inclusive eu, cada qual em seu grau, seguimos na terrível mediocridade do cotidiano. Antes todos nós, em coletivo, cedêssemos à mudança, reavaliando-se radicalmente, abandonando a mediocridade, e fizéssemos o POSSÍVEL E O IMPOSSÍVEL pra impedir por quaisquer meios o colapso ecológico. Antes todos largassem as ferramentas e, numa greve planetária, preferissem morrer à servir aqueles que o tempo já provou serem indignos de possuir o planeta e a humanidade em suas mãos.

Se a humanidade estivesse sã, ligaria bulhufas à manutenção da normalidade, e lutaria com toda força pelos tesouros mais preciosos que possui.

Mas a insanidade é um fato real, concreto, biológico. Ela tem e faz sentido, mas dentro de sua própria lógica; e como o Corpo é Memória, a tabula rasa é impossível, e só nos resta tentar entender a lógica do poder se quisermos dele escapar. Primeiramente:

1-O PODER TEM SUA INÉRCIA

A insanidade a que o psicanalista Wilhelm Reich nomeou peste emocional não é nem nunca foi questão do posicionamento ou opção consciente das pessoas. É o peso, a inércia, de dez mil anos de servidão gravados à ferro e fogo nos corpos. Estamos pagando o preço de cada massacre, de cada escravo, de cada mulher violentada. A raiva, mágoa e revolta que isso gera passa de geração a geração, e claro que o tempo cicatriza as dores e apaga as chamas, mas a memória fica, e conforme passam os séculos (e a história se repete), as memórias ossificam, se torna parte invisível da estrutura social, dos processos de corporificação, e da linguagem. Essa memória ossificada é feita de energia biológico-emocional condensada, ela age sobre a história com uma carga definida de energia, e para opor-se a essa carga (ou redirecioná-la) é preciso não só as técnicas corretas, mas também grandes quantidades de energia. E energia é tempo, tempo humano, tempo planetário, tempo de vida, algo bastante escasso hoje em dia.

Ao fim de seus dias, Wilhem Reich - descobridor da peste emocional - desacreditou que era possível curar terapeuticamente a humanidade num ritmo plausível. Mesmo a super-eficaz análise Reichiana, que acessa a neurose diretamente no corpo,  pode arrastar-se por anos, e em sua maioria elas falham em erradicar a neurose pelas raízes. O que isso quer dizer é que é necessária grande energia pra mudar a estrutura ossificada de um corpo. Ao fim de sua vida Reich passou a apostar mais no trabalho com as crianças, que ainda não se ossificaram numa estrutura cega, mas caímos aqui no paradoxo de que para criar crianças libertariamente, precisamos estar nós mesmos libertos dessa insanidade, a nível emocional, experiencial, biológico-intuitivo. Belos ideais não são suficientes; boa vontade só não adianta, porque o jogo da neurose, e do poder, é inconsciente, quer dizer, nossa própria noção de eu e nossas conceituações são as mesmas ferramentas pelas quais nos aprisionam.

Existe algo de muito próximo entre o processo de libertação bio-energético e as várias tecnologias místicas de meditação e de êxtase. Claro, os enquadramentos conceituais, as éticas e estéticas de cada caminho místico diferem uns dos outros, e diferem também dessa abordagem analítica e filosófica que define o trabalho de Reich. Reich tinha suas dúvidas quanto à possibilidade de erradicar 100% da neurose de um indivíduo; nos caminhos místicos, a dissolução do falso eu é o objetivo de cabo a rabo, e alguns milhares de anos foram dedicados por almas compassivas e muito inteligentes a desenvolver os melhores métodos de facilitar esse processo. Aqui, acho muito triste que a filosofia ocidental, em busca de romper com a superstição, tenha jogado fora o bebê com a água do banho, desperdiçando milênios de conhecimento de técnicas e teorias do desmonte das falsas noções de Eu, em prol de construir uma nova psicologia "científica" que acaba por se revelar mais uma ferramenta de domesticação à serviço da "normalidade civilizada" insana.

De todo modo, seja por meios analíticos, seja por meios místicos, a conclusão é a mesma: é necessário grande engenho e empenho pra desmontar as gaiolas internas de cada um; sem esse engenho e empenho, qualquer solução "objetiva" para nossos problemas "objetivos" será ilusória, pois a mente na verdade está nos enganando, mantendo-nos numa camada de superficial desconectada das razões históricas e biológicas profundas (inconscientes) de nosso comportamento.

É entendendo as razões profundas que se pode mudar o processo. O medo que sentimos de sair da área de conforto da neurose, mesmo frente ao colapso planetário, finca suas raízes em cada indivíduo nos primeiros condicionamentos da infância. A vida de um bebê ou criança pequena literalmente depende dos pais. Sem sua proteção ou alimentação, a criança ~morre~. Ela sabe disso, mesmo que instintiva ou intuitivamente, e irá fazer praticamente qualquer coisa pra assegurar o afeto e devoção dos pais. Mesmo entrar nos jogos de poder mais insanos, afirmar "verdades" que ferem ou limitam injustamente a si próprio, engolir raivas e choros que doem tanto, mas tanto, que preferimos não sentir, empurrando a dor pra baixo da consciência, carregando esse peso a vida toda sem nem mesmo lembrar, uma vida aprisionada no passado, e que muitas vezes acaba por desabrochar, ao fim e ao cabo, em uma série de doenças (em especial o câncer).

Mas os pais não inventaram o poder. Eles fazem pra criança o papel de filtros e representantes das demandas do mundo externo, e portanto estão em sua maioria apenas reproduzindo o que foi feito deles em sua própria infância (e similarmente continua sendo feito pela vida adulta afora). Os ideais aos quais os primeiros condicionamentos nos agrilhoam são, na verdade, ideais sociais, ligados às mega-máquinas sociais de castramento e domesticação que nos mantém encurralados a servir os mega-ricaços.


Oedipus Rex por Max Ernst, 1922

2-O PODER AINDA É UMA AMEAÇA OBJETIVA

E aí chegamos aqui na segunda dimensão onde o medo da mudança faz sentido; em relação às ameaças objetivas do mundo social externo, onde romper com as limitações socialmente impostas frequentemente implicam em agressão e encarceramento pelos aparatos de controle, e também ostracismo, exclusão ou marginalização como párias.

Numa cidade grande de um país ocidental e democrático e dotada de uma cena boêmia como Belo Horizonte isso por vezes pode sair de vista, especialmente pros nascidos e criados nas classes média e alta. Mas até bem, bem pouco tempo atrás, os mínimos desvios da lei & ordem eram suficientes pra destruir a vida de um sujeito - mesmo de classe alta! Convido o povo de minha terra a refletir sobre os campos de concentração (ditos hospícios) de Barbacena, em atividade até um par de décadas atrás, onde milhares de pessoas "desajustadas" eram despejadas nuas e confinadas a dormir ao relento, comer rango podre e beber água de esgoto - até morrer. Maconheiros, gays e lésbicas, gente pobre sem documento, gente pobre do interior, gente que arrumou briga com o coronel, toda a miscelânea da "doença mental" (sob o critério dos mais insanos entre todos dentro daqueles muros - os psiquiatras), qualquer coisa naquela época era suficiente pra encarceramento sem julgamento, a mando da família, da igreja e dos "bons costumes".

Ou seja, a liberdade que temos em papel não sabemos usar pois as travas da infância nos impedem; e mesmo essa que supostamente temos, é bastante relativa ainda, e tão recente que os hábitos de dez mil anos ainda se interpõe a que a enxerguemos; e por isso em um mundo com tanta abundância de comida e tantas comodidades tecnológicas, não conseguimos sair dos mesmos problemas emocionais-sociais de sempre.

Em meio a isso tudo, a moral, a polícia e o controle adquirem seu sentido relativo. Uma coisa é a expressão biológica livre e graciosa de um organismo sadio; outra são os surtos e explosões violentas da energia biológica na panela de pressão da civilização; uma coisa são as unhas, garras e dentes dos quais fomos naturalmente dotados; outra coisa são as perversões a que essa agressividade se vê submetida, tornando-se ressentimento, ódio, veneno, sadismo ou masoquismo (e aqui não falo da cena social de "fetiche", que é as vezes a canalização mais inofensiva desse tipo de tendência). A polícia e o controle se justificam através dos monstros que surgem graças ao próprio controle. Isso não quer dizer que os monstros sejam irreais, como hoje todos bem sabem. Os monstros estão aí, é só que eles são crias das mesmas instituições que buscam controlá-los, e ademais, na polícia, os monstros abundam.

Mesmo o surto violento, a explosão irracional de raiva, tem sua lógica de ser, a sua razão. Que é uma merda estar na reta de uma bomba dessas quando explode, não tenho dúvidas. Mas é muito cômodo olhar apenas pra explosão, e não ver como ela foi plantada, e cuidadosamente regada, dia após dia, entra ano sai ano, décadas e séculos a fio. Quando olhamos pela grande cena tomamos consciência de como estamos metidos todos num mesmo processo, somos no mínimo cúmplices de boa parte de tudo que está aí, e em grande medida fomos só jogados aqui por nossos condicionamentos e fluxos de humores. Não acho que é preciso se sentir culpado (embora isso vá acontecer, pois assim fomos condicionados), mas sim desenvolver suficiente amplitude de vistas pra usar mesmo as explosões e venenos da insanidade como lembretes, até bem vindos, de que ainda há trabalho a fazer, que estamos na Terra pra (entre outras coisas) aprender, trabalhar, e sobretudo amar; e amar quer dizer entender a nível de coração a inter-relação de todas as coisas vivas, de todo o universo. Por exemplo, se você é branco e de classe média e alguém te assalta ou te machuca, putz, que merda estar na reta né? Mas por toda sua vida você foi bem tratado por ser branco, e agora pela primeira vez você experiencia as consequências de um processo coletivo de escravidão e roubo, o mesmo que garantiu o seu conforto em primeiro lugar. O que fazer? Alimentar a raiva contra o indivíduo que te agrediu, ou re-direcionar a raiva pra desmontar a estrutura, ainda de pé, que colocou e sustenta aquele indivíduo na pior?

Essa é a diferença, como diz Deleuze, entre a esquerda e a direita, para além de partidos políticos específicos ou auto-declaração. Esquerda é quando você pensa partindo do grande quadro rumo à você, encompassando portanto na noção de si a perspectiva da diferença entre essas várias camadas e tempos de um mesmo processo que é a Terra e o Universo, ademais. Os antigos chamam a isso Entendimento; quando unido à Sabedoria não-verbal que o êxtase propicia, é capaz de desmanchar a mais sólida das gaiolas.

Já a Direita é quando você toma o senso superficial de si-mesmo, as opiniões bairristas do Ego, enfim - o próprio umbigo como centro especial e destacado do universo, o outro (interno e externo) tornado então apenas uma função do mesmo. Isso quer dizer que dentro de um partido dito "de esquerda", pode haver e frequentemente há muita direita, em ato e opinião, enquanto que até mesmo numa cena de direita pode surgir quiçá o espaço pra essa expansão de consciência a que modernamente podemos referir como o devir "esquerda". A diferença é, enfim, Ética, e portanto, também Estética...

~Pan
FRENTE DE COMBATE SURREAL-REICHIANA
2015

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